Tenho um turno de 16 horas e tenho direito a uma máscara para todo o turno. A meio fica ensopada
Testemunho de João Barata, 32 anos, médico do serviço de Urgências do Hospital de Santo António, no Porto. “Indigna-nos um bocado ouvir o primeiro-ministro falar do material de protecção. Temos material, não temos suficiente.”
Estou há cerca de uma semana a viver numa casa à parte, mas já há cerca de três semanas que estou isolado das pessoas mais velhas da minha família, os pais e avós. Normalmente partilho mais a casa com o meu avô, de 95 anos, mas os sobrinhos, com dois, três anos, estão sempre a entrar e a sair, por isso, decidi não voltar a casa.
Desde que começou [a crise da covid-19] o serviço de urgências mudou bastante. Pelo lado positivo, o número de pessoas que acorrem ao serviço é cada vez menor, até dizemos na brincadeira que a covid é o melhor triador do mundo. Agora só vai às urgências mesmo quem tem algo grave, já não aparecem as pessoas que têm uma dor de dente ou que estão com tosse há dias e se lembram de ir às duas da manhã para lá. Mas também temos o reverso da medalha: pessoas que precisam de ir às urgências, com suspeita de enfartes, por exemplo, e que fogem. Foi reportado por uns colegas do INEM de Braga que tiveram de chamar as autoridades para obrigar um homem a ir ao hospital, porque estava com suspeita de enfarte e não queria ir para o Hospital de S. João [Porto] de maneira alguma, com medo da covid-19.
Além disso, o serviço está completamente reformulado. Normalmente funciona tudo integrado, mas desde a semana passada que no Santo António [Porto] a disposição do serviço de urgências foi alterada. Os doentes estão separados entre os que têm doenças respiratórias — asmáticos, doença pulmonar crónica... São todos considerados um caso suspeito da covid, tendo ou não link epidemiológico. Por isso há separação física na urgência.
Quem está neste lado, como me aconteceu já, está vestido durante umas quantas horas com equipamento de protecção individual completo — máscara, touca, bata. São muitas horas e não podemos sair dali, em teoria.
Neste momento estou de folga, só regresso ao serviço amanhã, mas até vir para casa não estávamos a fazer testes a todos estes doentes. Só era logo feito a quem tinha link epidemiológico. Os restantes (com problemas respiratórios) eram tratados normalmente para a doença de que suspeitamos e só se o caso se agravasse e não houvesse melhorias é que se fazia o teste. Já aconteceu comigo ter um caso que não achávamos que fosse covid e que se veio depois a confirmar que era. Isto leva muita incerteza ao nosso trabalho. Não sei se nestes dois dias isto mudou.
Indigna-nos um bocado ouvir o primeiro-ministro falar do material de protecção. Temos material, não temos suficiente. Eu tenho um turno de 16 horas e tenho direito a uma máscara para todo o turno. A meio ela já fica ensopada, por causa do suor. Acho que isto acontece por haver pouco material e por os hospitais estarem a racionar com medo — que existe mesmo lá dentro — que a pandemia evolua e que não consiga haver suprimento de material para a demanda.
O que mais sentimos é a incerteza. Como é uma doença nova, há muitas questões que não estão respondidas e este medo criado na população em geral também se transmite para os profissionais de saúde. Em casa as pessoas estão sempre a falar disto, há desinformação por todo o lado e a pressão dos familiares e amigos é muita. Dizem-nos, não é melhor não ires trabalhar? E nós temos o nosso sentido de responsabilidade, não pode ser por aparecer uma doença mais grave que deixamos de ir trabalhar, mas isto faz com que muitas vezes já cheguemos cansados ao serviço.
Entre nós (no serviço) tentamos aliviar o assunto, mas desde que houve a separação de doentes, acho que caiu mais a ficha. Estamos completamente vestidos com equipamento de protecção. Antes tínhamos alguma protecção, usamos sempre máscara na urgência, havia mais desinfecção, mas não este impacto de entrarmos no serviço vestidos dos pés à cabeça. Cai a ficha. Até para ir à casa-de-banho é complicado, porque há procedimentos relacionados com o equipamento. Nem bebemos água a suamos bastante.
Quando isto acabar acho que me vou lembrar de todas as situações de contingência, de andar com o fato vestido, dos poucos utentes nas urgências... E também acho que vai ficar esta ideia que, nesta altura, todos se lembraram de nós. Estamos a receber ofertas e tudo, há cartazes de apoio.
Mas acho que depois disto já ninguém se vai lembrar outra vez e vamos ser outra vez esquecidos.
Depoimento recolhido por Patrícia Carvalho