Como estão a enfrentar a epidemia comunidades ciganas em acampamentos sem água corrente?

Há mais de três mil famílias ciganas a viver em tendas de lona, barracas de madeira, tijolo e/ou zinco ou autocaravanas. Um desafio ao combate à propagação do coronavírus. Nos últimos dias, nómadas têm sido empurrados de um lado para o outro no Alentejo. Um grupo expulso de Espanha está desde terça-feira a fazer quarentena num parque improvisado.

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Bairro de lata, Ervideiros, perto da zona industrial de Taboeira, Aveiro. Adriano Miranda

Não é um pequeno grupo. Estima-se que mais de três mil famílias ciganas vivam em tendas, barracas ou alojamento móvel. Bruno Gonçalves, vice-presidente da Letras Nómadas, teme o pior. Sabendo que a melhor forma de prevenir a covid-19 é manter alguma distância e lavar as mãos, amiúde, com água e sabão ou com uma solução feita à base de álcool, pergunta-se: “Como é que as pessoas vão fazer isso? O sabão não é caro, mas é preciso ter água corrente.”

O número até pode pecar por defeito. No âmbito da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, em 2013 e 2014 o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana fez um questionário e chegou àquela estimativa: 32% das famílias ciganas residentes em Portugal têm por morada uma habitação “não-clássica”, isto é, uma tenda de lona, uma barraca de madeira, tijolo e/ou zinco ou uma autocaravana.

Esse contexto tem valido assíduos reparos de organismos internacionais, como o Comité Consultivo da Convenção para a Protecção das Minorias Nacionais ou o Comité Europeu dos Direitos Sociais. E está a tirar o sono a activistas como Bruno Gonçalves, agora que o mundo procura travar uma pandemia. Como enfrentar o vírus sem pé-de-meia, água canalizada, corrente eléctrica, saneamento básico, recolha de lixo?

Maria José Casa-Nova, coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, revela particular preocupação com as pessoas que vivem em itinerância – “não forçada por lei, mas forçada de facto”. “Estão numa situação ainda mais precária”, salienta. “Vão sendo expulsas dos locais. Se eventualmente alguma for portadora do vírus, temos uma situação muito delicada.” Nos últimos dias, várias foram empurradas de um lado para o outro.

Essa é a realidade de um grupo de 67 que na sexta-feira se viu forçado a sair de Espanha e tentou acampar num olival próximo de Vila Boim, Elvas. Expulso no domingo, uma parte avançou para os arredores de Estremoz, outra para os arredores de Vila Viçosa. Rui Salabarda, da associação Sílaba Dinâmica, mobilizou outros activistas e a associação Gota d’Arte e o Banco Alimentar de Elvas para os ajudar. Sem computadores, nem telefones, não sabiam que havia uma pandemia. Salabarda é que lhes explicou o que estava a acontecer e que cuidados deveriam ter.

Alertado por Salabarda, o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) accionou a saúde e o apoio social. Foi-lhes então assegurado aquilo a que o gabinete da secretária de Estado para a Integração e as Migrações chama um “espaço seguro para quarentena”. A caminho de Évora, domingo, uns fizeram paragem no Vimieiro e os outros no Redondo, para que os animais que puxam as suas carroças pudessem descansar. Segunda-feira de manhã, chegaram ao destino e ficaram à espera que a autarquia decidisse onde improvisaria um parque nómada, onde serão colocadas sanitas e chuveiros, bem como uma cozinha portátil. Instalaram-se lá, nas imediações da Barragem de Monte Novo, esta terça-feira. “É o que é possível”, resume Salabarda. Pelo menos para já, o delegado de Saúde não encontrou sintomas de covid-19 no grupo. Esta quarta-feira, instalou-se um ponto de água e distribuíram-se refeições.

Emergência alimentar

De norte a sul, a Bruno Gonçalves, residente na Figueira da Foz, vão chegando notícias de como a pobreza se agrava, agora que as feiras não se montam e os mercados não abrem. Nem todos os feirantes preencherão os requisitos para receber os apoios previstos para empresários em nome individual. E alguns têm de pôr mais pratos na mesa ao almoço e ao lanche, agora que as escolas estão fechadas.

Segundo o Ministério da Educação, há cerca de 700 escolas preparadas para continuar a servir refeições aos alunos mais carenciados. Pode ser grande a distância entre a casa e o agrupamento e as autarquias ainda estão a accionar alternativas, como a entregar cabazes de produtos alimentares aos encarregados de educação.

Organizados, dirigentes associativos e mediadores municipais identificaram 70 famílias particularmente vulneráveis – em Afândega da Fé, Barcelos, Ovar, Leiria, Lisboa, Almada, Elvas, Estremoz, etc.. Isso inclui 15 famílias despejadas do Bairro de Alfredo Bensaúde, na freguesia dos Olivais, em Lisboa, e a dormir em tendas e carrinhas e patamares de prédios.

Na semana da declaração do estado de emergência, fizeram uma angariação de fundos para lhes fazer chegar vales de supermercado. “Estamos a priorizar as famílias com crianças ou pessoas mais velhas que necessitem de medicação, mas há muitas que precisam de ser apoiados”, diz Bruno Gonçalves. “Apelo aos bancos alimentares e a outras entidades que têm essa missão de apoiar com alimentos, que não se esqueçam destas famílias que ficarem sem o rendimento que as feiras e os mercados lhes davam.” A campanha prossegue (associacaoletrasnomadascigana@gmail.com ).

“Temos estado em contacto permanente com os serviços que prestam assistência a estas comunidades no sentido de dar resposta às necessidades sentidas nesta altura”, responde, por escrito, o gabinete da secretária de Estado. “No caso das crianças e jovens, estamos em articulação com o Ministério da Educação para assegurar o acesso a alimentação proporcionada pelas escolas, assim como a actividades pedagógicas.”

O gabinete de Cláudia Pereira afiança ainda ter reforçado o acompanhamento, via telefónica, a equipas municipais de mediadores, a equipas de projectos Escolhas, associações ciganas e entidades promotoras de projectos de inserção profissional de populações ciganas. Os mediadores interculturais “têm tido um papel crucial na articulação entre as famílias, as autoridades locais e o Alto Comissariado para as Migrações.”

Especializada em Educação, Maria José Casa-Nova chama a atenção para as crianças e jovens, ciganas e não-ciganas, que não têm acesso a computador e Internet e que, por isso, não podem acompanhar actividades lectivas online. Muitas nem têm pais que os possam ajudar a fazer as tarefas escolares. “Acho que nos exames nacionais teremos de ver onde ficaram as escolas na altura da paragem para uniformizar e saber que temas podem sair sem prejudicar os jovens que não têm acesso a Net em casa.” Parece-lhe até que, no ensino básico, não sendo possível retomar as aulas nos seus moldes habituais este ano lectivo, se deverá ponderar a possibilidade de passagens administravas.

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