Direito em tempos de cólera

É certo que a lei geral do estado de emergência prevê que qualquer violação dos seus termos constitui delito de desobediência, mas o decreto presidencial só estabelece que pode existir restrição compulsória da liberdade de circulação, deixando ao Governo a forma de a concretizar.

Tomando de empréstimo o título da obra magna de García Márquez, penso ser esta uma boa definição dos tempos que vivemos no Direito. Quando leccionamos a matéria relativa ao estado de anormalidade constitucional — sítio e emergência —, pensamos sempre que se trata de uma realidade longínqua, contudo, aí está a primeira na vigência da actual Constituição da República Portuguesa de 1976.

Há ponderosos argumentos para defender a declaração ou não do estado de emergência em virtude de calamidade pública. Confesso que, se estivesse na posição do Presidente da República, por uma questão de cautela, teria feito o mesmo — tanto mais que, assim, as soluções jurídicas ficam devidamente enquadradas e o que necessitamos agora é da maior clareza possível, como diria Beccaria —, apesar da notória falta de acordo entre o Chefe de Estado e o Governo e alguns partidos da esquerda.

O decreto presidencial foi elaborado com cuidado e minúcia, fazendo do princípio da proporcionalidade a bússola orientadora, como é exigido pelo art. 19.º da  (CRP) e pela Lei que regula estas matérias (Lei n.º 44/86, de 30/9). Daí a chamada “posição gradualista” de que ontem falava o PM em conferência de imprensa, depois de uma longa reunião do CM, destinada a dar corpo aos aspectos carecidos de regulamentação do decreto presidencial.

Declarado por 15 dias (até às 23h59 do dia 2 de Abril), prazo máximo inicial que a lei consente, o mesmo pode ser prorrogado – e sê-lo-á certamente – por períodos iguais e sucessivos enquanto se mantiver a pandemia. Ao fim de cada duas semanas, o Governo, órgão de soberania responsável pela implementação do estado de emergência, elabora um relatório sobre as medidas tomadas e o efeito que surtiram, que deverá enviar ao PR e à Assembleia da República, sendo que esta última deverá adoptar resolução em que se pronuncia favorável ou desfavoravelmente.

A Procuradoria-Geral da República e a Provedoria de Justiça estão em sessão contínua (para além do Conselho Superior de Defesa Nacional), ou seja, trabalham 24 sobre 24 horas, no sentido de garantir que a emergência não seja pretexto para violar direitos fundamentais, cabendo à primeira o papel de guardiã da legalidade democrática e à segunda a verificação da existência de lesões desses mesmos direitos, recebendo queixas dos cidadãos e actuando de modo pró-activo.

Ao tempo em que escrevo, ainda não foi publicada a Resolução do Conselho de Ministros de 19/3 em Diário da República, pelo que só conheço a comunicação de ontem do primeiro-ministro. E a mesma, como seria natural, deixa algumas dúvidas. Pelo que percebemos, dividiu-se a população em três grupos: os que já estão infectados ou se encontram em estado de vigilância activa, em relação aos quais se impõe o dever de isolamento, não podendo sair dos hospitais ou das suas casas. Se o fizerem, cometem o crime de desobediência simples (art. 348.º, n.º 1 do CP), punido com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.

Ao contrário do que disse o primeiro-ministro, a lei do estado de sítio e de emergência determina — exactamente para maior garantia dos direitos de todos — que a detenção seja comunicada a um juiz de instrução criminal no prazo máximo de 24 horas, validando este ou não a detenção. Naturalmente que o inquérito — fase de investigação no processo penal — cabe ao Ministério Público, nos termos gerais.

O direito de acesso aos tribunais nunca pode ser suspenso ou restringido em estado de emergência. Foi finalmente publicada a Lei da AR que suspende os prazos de qualquer tipo que estejam em curso, como aqui reclamei em artigo de opinião, juntando a minha voz à de tantos, no que era um tratamento de desfavor principalmente para advogados e solicitadores.

Quanto às pessoas com mais de 70 anos ou com morbilidades associadas, há um dever especial de protecção, o que significa que, como regra, devem permanecer em casa e só podem sair para comprar bens essenciais ou tratar de assuntos inadiáveis, como receber as suas pensões. Aí, apesar de nos faltar ainda a Resolução do CM, não haverá a prática de qualquer crime de desobediência se existir incumprimento, mas as entidades policiais devem acompanhar o prevaricador a casa.

É certo que a lei geral do estado de emergência prevê que qualquer violação dos seus termos constitui delito de desobediência, mas o decreto do PR só estabelece que pode existir restrição compulsória da liberdade de circulação, deixando ao Governo a forma de a concretizar. Assim, se a Resolução do CM não cominar as condutas proibidas destas pessoas com desobediência, não praticam estas qualquer crime, excepto um eventual delito de propagação de doença contagiosa (pena de prisão de 1 a 8 anos, nas hipóteses mais graves – art. 283.º do CP).

Finalmente, a população em geral – que não está infectada ou se encontra assintomática e não integra grupos de risco – tem o dever geral de recolhimento domiciliário, também só podendo sair para as tarefas essenciais, como trabalhar ou comprar bens essenciais, p. ex. Mais uma vez, não há punição por desobediência, devendo as forças de segurança dispersar aglomerados de pessoas – também previsto no decreto presidencial –, na tal atitude pedagógica a que se referia o primeiro-minsitro.

Para já, analisei, em traços gerais, as consequências do estado de emergência em sede do direito à liberdade de circulação. Há outros direitos fundamentais que se encontram restringidos, mas sobre eles reflectirei em posteriores artigos.

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