Coronavírus. Sobe preocupação com violência doméstica: Governo tem mais cem camas em casas-abrigo
O período de isolamento social causa preocupação a Governo e entidades no terreno. Vítimas ficam mais vulneráveis, confinamento pode desencadear mecanismos de poder, avisam especialistas. Secretaria de Estado para a Igualdade cria campanha e pede a vizinhos e família para estarem atentos.
Na China, depois da quarentena por causa do coronavírus, os dados da violência doméstica dispararam. Em algumas áreas chegaram mesmo a triplicar, segundo registos de organizações não governamentais. Esta é uma preocupação das entidades oficiais, organizações no terreno, académicos que estudam o fenómeno. A antecipar uma subida de casos, o Governo assegurou mais cem camas para acolher mulheres vítimas de violência, criou um email específico para receber novas queixas com a palavra “covid-19” e tem piquetes de urgência em todos os distritos, além do atendimento normal. Neste momento, a rede tem 677 camas nas casas-abrigo e 168 nas respostas de emergência.
“Sabemos que [o isolamento] vai ser um problema muito difícil para todas as famílias e de forma acrescida para quem era já era vítima de violência doméstica”, diz Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade.
Por enquanto, a secretária de Estado não tem registo de queixas “fora do normal”. O Governo vai lançar uma campanha apelando à responsabilização dos amigos e vizinhos. “Temos de reforçar a vigilância social”, acrescentou. Trata-se de um momento “particularmente sensível” e “vulnerável” porque as situações de isolamento costumam justamente “ser uma táctica” do agressor e, “estando em confinamento, isso acrescenta vulnerabilidade”.
Também as vítimas LGBT têm garantia de acompanhamento técnico e de possibilidade de serem albergadas em caso de necessidade, acrescentou.
Os atendimentos na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) desceram na última semana, mas isso não quer dizer que os casos tenham diminuído. Daniel Cotrim, psicólogo responsável por esta área na APAV, diz que é normal porque neste momento as pessoas estão preocupadas em resolver questões práticas do isolamento. “Só vamos conseguir ter uma noção mais clara dentro de 15 dias/três semanas”, afirma. Também o Ministério da Administração Interna diz que as queixas à GNR desceram (a PSP ainda não tinha os dados compilados).
Certo é que as estatísticas mostram que depois de férias e de festividades como Páscoa, Natal ou Ano Novo os atendimentos costumam disparar. Mas com o isolamento por causa da pandemia da covid-19 há uma variável que muda: “As pessoas estão confinadas, impedidas de sair e de pedir ajuda.” Por isso também estão a apelar a que a vizinhança ajude. A APAV continua a fazer atendimentos através da linha telefónica. “Os direitos das vítimas não estão de quarentena”, avisa.
Isolamento reforça estratégias de agressor...
Na quarta-feira de manhã, a deputada Elza Pais, socióloga que investigou o fenómeno da violência doméstica, emitiu um comunicado enquanto presidente das mulheres socialistas, em que deixa a mensagem: “É importante que as vítimas saibam que não estão sozinhas e abandonadas, e que podem continuar a pedir apoio às forças de segurança e aos serviços de apoio e protecção das vítimas.” Apelava “à solidariedade e alerta da vizinhança para denunciar estas situações, accionando as forças de segurança sempre que necessário”.
O que o isolamento irá de facto provocar em Portugal é, por enquanto, especulação, mas não há dúvida para os especialistas de que nos encontramos em situação de risco. “As redes informais têm de servir de base de apoio”, afirma Ana Isabel Sani, professora de Psicologia e especialista nesta área. “É importante quebrar o isolamento com o telefone, com as redes sociais.”
Apesar de os registos darem conta de que as queixas tendem a subir depois dos fins-de-semana, agora os dias de semana tornam-se menos diferenciáveis pelo facto de se estar sempre em casa. “Muitos dos acontecimentos dão-se em contexto mais restrito, de ocultação. O isolamento social vem reforçar as estratégias do agressor.” Por outro lado, se não há interacção com o exterior, diminui-se a possibilidade de se transmitir “um indicador”, nomeadamente pelas crianças. “As estratégias de controlo e domínio são reforçadas”, afirma.
Neste contexto, torna-se necessária uma atenção redobrada em relação a esta questão, exactamente pelo que os dados indicam relativamente a períodos de pausa, afirma Elisabete Brasil, jurista que durante anos esteve na UMAR — União de Mulheres Alternativa e Resposta e no Observatório das Mulheres Assassinadas, mas que neste momento preside à FEM — Feministas em Movimento. “É um momento em que as pessoas estão mais tempo juntas, há maior conflitualidade e já temos números internacionais que nos mostram que é necessário ter maior preocupação, porque as vítimas ficam mais dependentes” — e muitas vezes sem saber a quem pedir ajuda numa altura em que poderão estar “em situação de maior perigosidade”.
Por outro lado, o isolamento social traduz-se em maior tensão na própria pessoa, sublinha. Se a actual quarentena conduziu o país a um cenário comparável ao de uma guerra, quem está em contexto de violência doméstica já “está em guerra”: acaba por ficar “em duplo cenário de guerra”. O importante é passar a mensagem às vitimas de que podem continuar a recorrer aos serviços de apoio, afirma.
... ou será que aproxima?
O contexto preocupa o sociólogo Manuel Lisboa, especialista na área e responsável pelo Observatório Nacional de Violência e Género: “Se pensarmos que o local mais perigoso para as mulheres do ponto de vista de género é o espaço da casa-família, temos de nos questionar”.
Mas o especialista sublinha: é difícil prever se irá existir um aumento dos casos porque “há outros factores que podem entrar em jogo” e “inclusivamente a situação pode aproximar as pessoas, fazer esbater alguns mecanismos de poder que estão na base da violência”. Alerta: isto é “meramente especulativo”. “Não sabemos qual é o efeito de uma crise, do medo que vem da dimensão da sobrevivência do ser humano, o pânico. É preciso estar atento.” Por isso, os vários organismos oficiais e de apoio devem reforçar os seus canais. Certo é que, quanto piores forem as condições das pessoas, maior a probabilidade de haver conflito e tensão. “Se a casa for grande, é mais fácil gerir as tensões”, refere.
Já o psicólogo forense Rui Abrunhosa Gonçalves, que tem trabalhado com agressores, lembra que quando se fala de violência doméstica há uma componente da personalidade que não se pode desvalorizar e que se activa por circunstâncias que nada têm que ver com a vítima, mas que são descarregadas no contexto familiar — que acontece, por exemplo, a indivíduos que têm uma baixa capacidade de resposta à frustração. “Quando foi a crise, havia a ideia de que os casos iam disparar e isso não aconteceu.”
É preciso ter em conta as “variáveis macro”, refere. “Numa sociedade desorganizada, o sentimento de impunidade é maior, porque as instituições não fazem o seu trabalho. Quanto mais os agressores perceberem que há menos tolerância à agressão, e menos impunidade, mais recuam. Isso tem de ser feito num contexto de Justiça”, sublinha.