Da praia ao convento, o Centro de Portugal é um mundo de doces
Cristina Castro foi do mar à fronteira com Espanha, pelo Centro do país, procurando doces, doceiros, pastelarias, histórias, tradições. Com mais de 300 páginas, acaba de sair o terceiro volume da imperdível colecção A Doçaria Portuguesa.
Da Figueira da Foz a Penamacor, de Ovar a Figueira de Castelo Rodrigo – desta vez, Cristina Castro, a incansável pesquisadora da doçaria nacional, percorreu o Centro do país em busca de bolos e de histórias a eles ligadas (conta ela que pelo caminho avariou três carros). Depois do Norte e do Sul, acaba de sair, numa belíssima edição da Ficta, o terceiro volume da série A Doçaria Portuguesa – Centro – um verdadeiro Larousse do tema, como escreve no prefácio o jornalista gastronómico Edgardo Pacheco (crítico do PÚBLICO).
Entre a delicadeza das pinhas de Montemor, a tentação dos bairradinos da Anadia, a imaginação das rendas doces de Peniche, a tradição das barrigas de freira ou do arroz doce, entre doces antigos, com misteriosas origens perdidas no tempo, e doces inventados agora por doceiros criativos, Cristina leva-nos numa viagem fascinante por ingredientes, técnicas, gestos, saberes, livros antigos que desvendam alguma coisa, mas dificilmente tudo, e brinda-nos até com algumas teorias novas.
Escolhemos oito momentos desta viagem e deixámos muitos outros para a leitura do livro. São 367 páginas com mais doces do que pensaríamos que existiam em Portugal, fotografias de Gonçalo Barriga e, para o caso dos doces mais transversais ao país, ilustrações de Ana Gil e as respectivas receitas.
Pão-de-ló
A tese de Cristina sobre o pão-de-ló é a mais arriscada que defende no livro, reconhece a própria. Mas, depois de muita pesquisa, sente-se confortável em publicá-la. Parte de um mistério que é a origem do nome pão-de-ló, que nenhum investigador explicou, e chega à conclusão que este bolo, que tem versões diferentes por todo o país, será um descendente dos biscoitos, embora na aparência e textura nada tenha a ver com eles.
Cristina parte das primeiras referências, no caderno da infanta D. Maria de Portugal, do século XVI, onde existe uma receita de pãoo de llo, que resulta num doce duro de amêndoas e açúcar. Curiosamente, os quadros de Josefa de Óbidos, no século XVII, apresentam um bolo semelhante ao pão-de-ló que conhecemos, apesar de só no século XVIII, com o livro do cozinheiro Lucas Rigaut, aparecer uma receita de “pão-de-ló ou bolos de Saboya”, sendo este um dos nomes dados aos biscoitos. Não revelaremos aqui mais, mas vale a pena acompanhar o trabalho de detective de Cristina na tentativa de desvendar o misterioso nome.
Os doces do caminho-de-ferro
Desde o início da sua pesquisa que Cristina tinha percebido que “entre Lisboa e o Porto, na faixa litoral da linha de comboio e da Estrada Nacional, havia uma série de doces que ganharam uma importância muito grande”. À medida que desenvolvia o seu trabalho sobre o Centro do país, essa impressão foi-se confirmando.
Há, diz a autora, mais doçaria comercial no litoral do que no interior. “O pão-de-ló de Alfeizerão, por exemplo, instalou-se junto a uma bomba de gasolina. Não acredito que tenha sido por acaso”, diz à Fugas. Da mesma forma, os ovos-moles de Aveiro ganharam a sua merecida fama em grande parte porque eram vendidos na estação às pessoas que viajavam de comboio.
Isto não significa que não exista doçaria no interior. A diferença, explica, é que essa “é feita em casa das pessoas, para as famílias e as festas, e não tanto para ser vendida ao público”.
A tripa e a bolacha americana
Esta parte da viagem começa na tripa de Ílhavo e leva-nos ao passado, ao tempo (possivelmente no século XIX) em que a venda ambulante de bolachas em Portugal era feita sobretudo por espanhóis, conhecidos como os barquilleros, que “viajavam de Norte a Sul do país com enormes latas coloridas às costas, dentro das quais guardavam barquillos, uma espécie de línguas-da-sogra, de forma cilíndrica ou cónica”.
Esses cones de bolacha vêm, mais tarde, a ser completados com uma bola de gelado, e Cristina admite que “o termo ‘bolacha americana’ [pelo qual são conhecidos nas praias portuguesas] venha do grande sucesso da venda de cones para gelado na Feira Mundial de 1904, em St. Louis, no Missouri”. Mas, se recuarmos mais no tempo, descobrimos que este tipo de bolachas foram uma evolução da forma de fabricar hóstias na Alta Idade Média, com “dois ferros compridos, cruzados em tesoura e com as pontas espalmadas, nos quais a massa era prensada a quente, desenhando em relevo motivos religiosos ou outros” – e também as gauffres vêm daí, assim como, claro, as waffles.
Os concursos
Vários dos doces incluídos no livro são criações recentes, muitas vezes resultado de concursos lançados pelas autarquias para que os pasteleiros desenvolvam um bolo com produtos locais. “Isso existe por todo o lado, mesmo em sítios que já têm doces com bastante tradição”, confirma Cristina. “É um fenómeno nacional e acho que o vou encontrar também nas ilhas [que constituirão o volume que falta da série A Doçaria Portuguesa]”.
Um dos exemplos mais surpreendentes são as rendas doces de Peniche, criação da confeitaria Calé, uma bolacha que pode ser com gengibre, com lima ou com caramelo e flor de sal, que inclui na massa macroalgas, e é envolta numa delicadíssima renda de açúcar inspirada nas rendas de bilros, tradicionais de Peniche “assim como de outras localidades portuárias de Portugal, Flandres, França e Itália”. O projecto resulta de uma parceria entre a Câmara Municipal de Peniche, o Instituto Politécnico de Leiria e a Calé.
Algas e urtigas
No que diz respeito aos ingredientes usados, a tendência é, por um lado, para valorizar os produtos tradicionais da região e, por outro, para arriscar em coisas novas. A Calé de Peniche, já citada neste texto a propósito das rendas doces, tem sido pioneira no trabalho com as macroalgas, que usa para o chamado pão do mar, e agora também nas bolachas.
Em Fornos de Algodres nasceram, por outro lado, as verdíssimas queijadas de urtigas, resultado do esforço que a Confraria da Urtiga tem estado a fazer para uma maior utilização deste produto. A autora das queijadas é Amélia Reis e, como mostra a pesquisa de Cristina, a prática de usar cardos bravos em diferentes pratos é muito antiga.
Amêndoas e feijões
Não faltam em Portugal pastéis de feijão. “Nunca provei um igual a outro”, garante Cristina. Uma das explicações que tem ouvido para esta popularidade do feijão tem a ver com a necessidade de reduzir a quantidade de amêndoa ralada que este tipo de bolos leva e que é um produto mais caro. Mas, admite, “pode haver casos em que houve a intenção de fazer um pastel com feijão porque dá um aveludado ao doce que não se consegue com outro ingrediente”.
Se o feijão branco é o mais usado, há já tentativas de utilizar outros: em Almeirim, por exemplo, existe um doce que usa feijão-frade. O facto é que, apesar de o consumo de feijão na alimentação dos portugueses ser baixo, na doçaria tem uma presença muito forte. E, a propósito, Cristina lança uma pista: poderá haver alguma relação com a tradição japonesa de usar feijão na sua doçaria?
Gemas e claras
É um tema eternamente debatido, mas ao qual vale sempre a pena voltar. Uma das explicações mais populares para o facto de a doçaria conventual portuguesa ser tão rica em gemas de ovo é a de que as claras seriam utilizadas pelas freiras para engomar os hábitos. Cristina discorda e, a propósito das barrigas de freira, defende outra tese. Segundo ela, as claras seriam antes usadas para a clarificação do açúcar e também da manteiga, aconselhada em várias receitas, numa altura em que os produtos teriam muito mais impurezas do que têm hoje.
“Esta parece-me a tese mais convincente”, afirma, lembrando que uma amiga investigadora que leu atentamente os livros de despesa de um convento feminino de Braga encontrou várias referências à compra de goma para engomar os hábitos. Sobrariam assim, da clarificação, as gemas, usadas para os doces.
Bola-de-berlim
Um dos mais populares bolos das praias portuguesas, a bola-de-berlim, é um exemplo, entre alguns outros, de doces que Portugal adoptou mas que têm a sua origem fora das fronteiras. Cristina traça a origem, até pelo nome, a um bolo alemão, mas explica que este, por seu lado, “descende de uma longa e largamente difundida tradição de doces fritos, típicos da época do Carnaval, e não só” – como são também as filhoses ou as malassadas açorianas.
Os bolos fritos com recheio de geleia de fruta eram populares desde há séculos no Centro e Norte da Europa, explica a autora, citando vários exemplos, da Polónia a Itália (onde se chamam krapfen, exactamente como eram chamadas as versões mais antigas, registadas já no século XIV), passando por França, onde, não por acaso, se chamam boules de Berlin.