O coronavírus paralisou a economia da cultura. E agora?

Num sector caracterizado pela precariedade e pela intermitência, as restrições que na última semana entraram em vigor, esvaziando a agenda cultural e deixando artistas e técnicos sem trabalho, podem ser fatais. O Ministério da Cultura está atento e promete anunciar apoios nos próximos dias.

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Paulo Pimenta

Doze meses a preparar um festival que todos os anos, entre Abril e Maio, enche por quatro dias a pequena vila de Barroselas, no concelho de Viana do Castelo, para servir quem lá vai, mas também para oxigenar uma economia local que funciona a passo lento no resto do ano. E, de súbito, a organização do SWR Metalfest já não se sabe se o festival vai acontecer. Portugal está em estado de alerta até 9 de Abril, numa tentativa de conter o novo coronavírus. O SWR Metalfest começaria no dia 29 do mesmo mês, mas, face aos cancelamentos que nos últimos dias se sucederam em catadupa, esvaziando a agenda cultural de festivais e espectáculos, fechando portas de museus e monumentos nacionais e deixando artistas e técnicos sem trabalho, a organização teme que o desfecho seja semelhante ao dos seus pares.

Tal como o Festival Tremor, de Ponta Delgada, ou o Festival Cumplicidades, cuja terceira edição decorria tranquilamente em Lisboa até à súbita interrupção causada pela pandemia, o SWR também não quer comprometer a segurança das cerca de três mil pessoas que diariamente rumam a Barroselas nos quatro dias do evento. A organização espera agora pelo fim do prazo estabelecido pelo Governo para decidir o próximo passo. Certo é que já há bandas internacionais do cartaz a cancelar as suas digressões e teme-se que mais decidam fazê-lo. Se o cancelamento for incontornável, o SWR deparar-se-á com o cenário que outros festivais já têm em cima da mesa: prejuízos avultados que, juntamente com os danos causados pelo encerramento das salas de espectáculos, afectarão severamente toda a indústria da música e a produção artística em geral, um sector já de si caracterizado pela precariedade e pela intermitência.

Neste contexto, dizem vários agentes, será inevitável que o Estado intervenha para proteger a frágil economia da cultura de uma disrupção que em muitos casos será fatal. Contactado pelo PÚBLICO, o gabinete do Ministério da Cultura promete que ainda esta semana serão anunciadas “medidas para o sector”. Não há números que quantifiquem as perdas que podem estar em causa em Portugal, mas em Espanha, onde a indústria cultural será a quarta economia mais importante, a Asociación para el Desarrollo de la Propiedad Intelectual estima que a paralisação forçada devido ao coronavírus possa custar ao país três mil milhões de euros por mês.

Ricardo Veiga, um dos responsáveis pelo SWR, ainda não fez contas ao prejuízo que pode vir a ter se acabar mesmo por implodir a empreitada que levou um ano a montar. Há dinheiro que não vai ser reembolsado, entre os cachets adiantados às bandas e os bilhetes de avião dos artistas.

Quem já tem uma ideia do prejuízo é Márcio Laranjeira, da promotora Lovers & Lollypops, que na semana passada se viu forçada a cancelar o Tremor, já com os bilhetes esgotados. De um orçamento de 200 mil euros, calcula que pelo menos cerca de 50 mil são irrecuperáveis. O festival deu ao público a opção de pedir a devolução do dinheiro do bilhete ou de o guardar para a edição do próximo ano, que arrancará “já com prejuízo”. O promotor vê com agrado a confiança que algumas pessoas demonstraram ao renunciar ao reembolso.

Além do prejuízo imediato, preocupa-o o futuro da actividade musical. Todos os intervenientes estão a ser afectados: artistas, salas, promotores, técnicos e restante cadeia de produção. Muitas destas estruturas, receia Márcio Laranjeira, que sabe de promotoras em vias de fechar as suas portas, poderão mesmo ser “dizimadas” se não existir uma resposta à medida por parte do Estado. E já num cenário pós-pandemia, o sector ainda vai passar por uma fase de recuperação lenta. “Há técnicos de som que tinham uma agenda cheia para os próximos meses e agora ficaram sem um único trabalho”, sublinha. Alguns dos outros concertos da Lovers & Lollypops​ também foram cancelados, outros estão a ser reagendados; os que ainda estão em cartaz “não vendem bilhetes”.

Daniel Pires, do espaço Maus Hábitos, no Porto, optou não por cancelar, mas por adiar o festival Vivarium, que decorreria no final de Março. É um “transtorno”, na medida em que envolve artistas que “sobrevivem” de trabalho que “por natureza” é “precário”. Mas o sector, sublinha, foi dos primeiros a dar o exemplo. “Foram as entidades culturais que se puseram à frente da trincheira. Mas já começaram a levar com as balas”, atira. O Maus Hábitos também já fechou as suas salas de espectáculo. Tem reservas financeiras, mas, com 28 funcionários a trabalhar a tempo inteiro, acabarão por se esgotar.

Também o director do festival vimaranense Westway Lab, Rui Torrinha, adiou a sétima edição do evento. Ainda a apurar os danos do prejuízo para a estrutura, diz ser prioritário “defender a parte mais frágil” – os artistas. Mas este infortúnio, argumenta, acaba por abrir uma porta para discutir a precariedade congénita do sector e encontrar formas mais sólidas de organização colectiva. Mesmo com apoios, dificilmente existirão recursos para todos. Para “blindar situações de calamidade como esta”, diz, “é preciso mudar o discurso do eu para o nós”.

É justamente essa ideia que está na base do serviço de crowdfunding lançado nos últimos dias pelo pólo cultural lisboeta Anjos70. A página GoFundMe, disponível na Internet, tem em vista a criação de um Fundo de Apoio para Artistas de Lisboa. O objectivo imediato é angariar 50 mil euros para amortecer o impacto das salas fechadas no rendimento de “músicos, DJs, actores, produtores, staff de sala e bar”, numa altura em que os eventos que lhes davam trabalho foram cancelados. À hora de fecho desta edição, e apenas com um dia de campanha, tinham sido angariados 1220 euros.

"Toda a gente parada"

Na vida de Iguana Garcia, a paragem forçada pelo surto do novo coronavírus teve um duplo impacto. Com novo álbum, o segundo, lançado em Fevereiro, teve de cancelar os concertos de apresentação já marcados, como muitos músicos. “Toda a gente que conheço da área está parada, sem trabalho. E para cada banda de cinco pessoas há 30 pessoas que trabalham por trás para a apoiar”, sublinha. E o seu outro emprego, na área do turismo – tem um tuk-tuk –, não vai melhor. Sem qualquer rendimento, sente-se encostado à parede. Tem passado os dias em casa a compor e a medir os efeitos que esta fase terá na sua vida.

Até há pouco mais de uma semana, também os músicos da Sonoscopia, estrutura sediada no Porto, tinham a agenda para os próximos meses bem preenchida. De um dia para o outro, entre concertos na Estónia, em Sevilha e em várias cidades portuguesas, sobra um espectáculo no Iraque, que “provavelmente” também não irá acontecer. “Parece que acordámos num cenário pós-apocalíptico”, afirma Gustavo Costa.

Os resultados de toda esta paragem, diz, serão “catastróficos”. Num sector em que “muitos” vivem “abaixo do limiar da pobreza”, acredita que a solução tem de passar por uma política cultural planeada a longo prazo, que rompa com os actuais ciclos de “dois ou três anos”, sempre dependentes de “quem possa estar no Governo” e permeáveis a “uma crise” como esta.

“Os artistas têm de deixar de ser vistos como algo descartável”, defende, para passarem “a estar ao nível de um professor, de um empregado de balcão ou de um bancário”. “Se continuarmos a apostar em modelos de apoio baseados em modelos financeiros e não em modelos estruturais, vamos estar sempre neste limbo”, e perante situações imprevistas como esta os danos colaterais serão literalmente irreparáveis: “Muitos de nós não vão conseguir sobreviver.”

"Uma catadupa de consequências"

Para Stefano Savio, director artístico da Festa do Cinema Italiano, “é prematuro avaliar a situação”, mas a estrutura da pequena associação cultural que dirige, a Il Sorpasso, será afectada “de forma negativa”. Quer em “termos monetários”, quer em termos profissionais. “Queremos mostrar o nosso trabalho e a programação na qual trabalhamos todo o ano, mas o importante é sermos responsáveis e agir em função da saúde pública.”

O adiamento do festival, que ia decorrer em Lisboa de 1 a 9 de Abril e incluiria muitas mais cidades portuguesas e estrangeiras, foi anunciado na terça-feira. Havia, segundo o director artístico, “viagens compradas” cujos valores poderão estar perdidos. Ainda assim, a organização está a trabalhar para “reaver os valores possíveis” e garante que os salários da equipa serão “assegurados”. As licenças de exibição dos filmes “não foram praticamente afectadas”, mas houve “gastos em legendas”. “Face à situação, fomos adiando algumas acções, nomeadamente de comunicação, que se prendem com impressão de materiais gráficos, não havendo, felizmente, grande impacto financeiro a esse nível”, continua. Mas há muito “dinheiro perdido em receitas de bilheteira, como é lógico”.

Ainda assim, Stefano Savio espera “realizar o festival ainda este ano”. A equipa está “a fazer os possíveis para que o evento seja adiado e não cancelado”. Continua “a analisar a situação e toda a conjuntura”, e ao mesmo tempo “a trabalhar para assegurar a realização da próxima edição em contacto com todos os envolvidos – parceiros, distribuidoras, apoios, colaboradores –, tentando minimizar os prejuízos”.

André Guedes, artista plástico, viu interrompida a mais recente edição do festival de dança contemporânea Cumplicidades, cujo formato varia anualmente e de que era este ano o curador. O festival, que deveria estender-se de 4 a 21 de Março, foi cancelado a meio, na quinta-feira, tendo-se cumprido apenas o primeiro fim-de-semana. “A nossa intenção é viabilizar uma boa parte dos projectos, sobretudo os nacionais, a médio-longo prazo, mas não sabemos qual será o desenvolvimento”, diz ao PÚBLICO. “Temos de pensar num plano b e encontrar um espaço onde possamos organizar-nos, estando menos dependentes dos equipamentos onde os espectáculos iam decorrer, que já têm agendas e programas cheios quase até meio do próximo ano.”

Se e quando o Cumplicidades conseguir retomar os espectáculos, alguns dos quais “foram suspensos a meio da montagem”, não o fará num formato concentrado no tempo como era suposto, mas mais espalhado ao longo do ano. “Tendo em conta que alguns dos artistas estrangeiros já tinham viagens pagas, não sabemos que condições vamos reunir para trazê-los”, comenta André Guedes.

Quanto aos salários, o curador explica que “os parceiros do festival são, na sua maioria, institucionais” (teatros municipais, Centro cultural de Belém, EGEAC), e que “internamente, nas suas próprias equipas, a situação está assegurada”. Fundamental seria, declara, “garantir que, apesar da suspensão dos projectos, os espaços assumissem os seus compromissos financeiros com o festival e com os artistas que ali estavam a apresentar trabalho”. É uma questão que ainda o preocupa, confessa: “Alguns dos parceiros já confirmaram essa vontade, mas nem todos. Há diferentes perspectivas dos conselhos de administração, que se escudam atrás de um contrato vago e que não contempla infelizmente situações de emergência como estas, profundamente inesperadas.”

O impacto na economia da cultura em geral, esse, será incomensurável: “É um período de uma enorme preocupação. A classe profissional é precária, as pessoas recebem a recibos verdes, há muita coisa que fica posta em causa. Isto vem criar um grande abalo, que terá uma catadupa de consequências.” com Inês Nadais

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