O vírus do medo já contagiou as democracias
As democracias vão resistir ao avanço inexorável do novo coronavírus? Já estão infectadas, respondem os especialistas. Com o mundo bloqueado pelo medo, apontam o risco: ainda convalescente da crise de 2008, a Europa dificilmente conseguirá ter uma resposta concertada às consequências económicas e sociais da covid-19. Eis-nos na iminência de uma nova crise.
Para além do presente imediato, das estatísticas febris, dos serviços encerrados e dos cidadãos ainda a digerirem o isolamento forçado, o novo coronavírus arrasta perigos nem sempre detectáveis na avalanche noticiosa que acompanha o avanço da covid-19, a doença a que dá origem e que, qual tsunami em câmara lenta, se imiscuiu em casa de todos, varrendo para debaixo do tapete o problema da crise climática, dos refugiados, das desigualdades sociais, dos ataques cardíacos, das mortes por cancro. A máquina da globalização irá gripar? E que danos infligirá o SARS-Cov-2 à democracia, à medida que a curva ascendente e enlouquecedora dos contágios começar a abrir brechas e a desacelerar as economias, apesar dos 65 mil milhões de euros disponibilizados pela Comissão Europeia?
Sendo prematuro pormo-nos a tentar adivinhar quão diferente ficará o mundo governado por Xi Jinping e Donald Trump quando a poeira desta pandemia assentar, como começa por ressalvar ao PÚBLICO o historiador Manuel Loff, há danos colaterais já bem visíveis na máquina da globalização. “O que gripou desde logo foi aquilo que nós descrevíamos como a parte positiva da globalização: sermos livres de nos mover em todo o planeta, de entrarmos em contacto uns com os outros, e tomar como positivo o contributo e o conhecimento dos outros. O anátema sobre ‘o estrangeiro que nos traz a peste’ está lançado”, diagnostica o docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Na prática, esta ordem para recuar tanto pode encontrar tradução na suspensão do turismo ou no confinamento doméstico para teletrabalhar como, para dar exemplos menos prosaicos, no encerramento das fronteiras entre os países e aos refugiados. Mas a constatação que o politólogo francês Dominique Moïsi defendeu numa entrevista ao jornal espanhol El País mergulhava mais fundo: “A epidemia intervém num momento em que já púnhamos em causa a globalização. E acelera e confirma potencialmente a ideia segundo a qual a globalização feliz era uma ilusão temporal que ia durar poucos anos e que acabaríamos por nos confrontar com a globalização infeliz.”
Conseguirá então o vírus pôr de joelhos o actual modelo de negócios da globalização, do mesmo modo que a Peste Negra, que no século XIV dizimou um quarto da população Ocidental, pôs fim ao dinamismo social da Idade Média? Mesmo que não duvidemos que este tsunami paralisou a China, a fábrica do mundo, Manuel Loff não arrisca ir tão longe. “Se me é evidente que isto vem acelerar a crise da vertente positiva da globalização (que já se percebia na tese, que não era exclusiva da extrema-direita, de que o Ocidente tinha de se virar para dentro e de se proteger da invasão dos migrantes), duvido que a universalização financeira e das trocas comerciais, todos os ramos da economia que possam passar pela vertente virtual, venham também a ser postos em causa, pelo menos com um carácter duradouro”, relativiza o investigador.
Desarranjo institucional e político
Mais declaradamente optimista, Luís Aguiar-Conraria, professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, antevê que “qualquer solavanco ou recuo na globalização serão temporários”. O que não o impede de antecipar os riscos de cairmos numa crise como a de 2008. “A paragem que está a haver na actividade económica é tão violenta como foi na anterior crise a paragem dos fluxos financeiros entre países, nomeadamente com a queda brutal das importações e exportações. Na altura, os governos coordenaram-se para evitar medidas proteccionistas e para repor esses fluxos. Vamos ver se o conseguem voltar a fazer, com essa dificuldade adicional de estarmos perante uma crise que se sucede a outra grande crise que teve consequências em termos de fragmentação política”, admite.
Somando “o efeito social e económico do coronavírus à luta em torno do preço do petróleo e à gestão do poder comercial norte-americano”, o politólogo Pedro Adão e Silva também encontra “um cenário propício” à reedição da crise de 2008. “A herança política da última crise foi a fragmentação política, a pulverização dos sistemas partidários e a ingovernabilidade na maior parte dos países europeus, com a consequente diminuição de compromisso e de consensos a nível europeu”, diz, justificando assim a sua preocupação com os efeitos do SARS-Cov-2. “Duvido muito da capacidade da Europa ter uma resposta concertada em torno das suas consequências económicas e sociais”, sublinha.
Independentemente da letalidade que vier a revelar, o vírus “aproveita-se de um contexto político, social e mediático novo que torna sua propagação diferente”. Nas redes sociais, o contágio corre tão célere como fogo em rastilho de pólvora. “As redes sociais são, como sabemos, terreno fértil para a propagação da ideia de que as instituições – Estado, governos mas também os meios de comunicação social tradicionais – não nos estão a contar a verdade, com a veiculação de mensagens falsas atribuídas a fontes fidedignas sobre as mortes que nos estão a ocultar… E, portanto, são o contexto ideal para a desconfiança, para o ressentimento e para a clivagem entre o ‘nós’ e o ‘eles’ que é o traço distintivo do populismo”, alerta Pedro Adão e Silva, convicto de que, a seu tempo, a epidemia vai trazer à tona o “ressentimento profundo” de que se alimenta o populismo. “Vamos ter aqui três tempos: o primeiro, que é o que estamos a viver agora, é de grande mobilização social e com convergência política quanto à importância de as respostas serem comuns; o segundo tempo será marcado pelas críticas aos erros e pelo sublinhar da incompetência de quem tinha responsabilidades para gerir a crise; na terceira fase, vai-se começar a apontar os tipos que são responsáveis por aquilo que está a acontecer na economia e na sociedade”, antevê, dizendo-se convicto de que, “se as coisas correrem mal, vamos ter um problema de desarranjo institucional e político”.
Entre Jinping e Trump
Na China, a capacidade de controlo de Xi Jinping vai ao ponto de conseguir medir a temperatura dos distribuidores de comida a cada duas horas e, na embalagem, é obrigatório que constem igualmente os valores da temperatura de quem confeccionou a refeição, bem como o seu contacto. Os passos de cada cidadão são controlados por uma aplicação instalada no telemóvel. Em contrapartida, cada cidadão tem, por exemplo, garantidas cinco máscaras gratuitas por semana. Por oposição ao exemplo italiano e ao que se passa nos Estados Unidos, com Donald Trump a recusar responsabilizar-se pelo que quer que seja que esteja relacionado com “o vírus estrangeiro” e a mostrar-se incapaz de tornar acessíveis os cuidados de saúde de que os norte-americanos precisam, não falta já quem questione se uma ditadura não estará mais bem preparada para conter o vírus. “Se se confirmar o aparente sucesso que a China está a ter a controlar isto, por contraste com outros países democráticos, mais gente pode começar a concluir que, afinal, o autoritarismo pode dar jeito, mesmo que em sacrifício de alguns direitos”, preocupa-se Aguiar-Conraria. O facto de a China ter, por via do seu extraordinário desempenho económico, “deitado por terra aquela ideia dos anos 80 e 90 de que eram os países com democracias mais sólidas que tinham melhores performances económicas”, não ajuda a pôr travão a tais ameaças aos regimes democráticos.
“O perigo de as democracias saírem fragilizadas desta pandemia é enorme”, vaticina também Manuel Loff. “O que é que disse [o deputado do CDS] Telmo Correia? Disse que é preciso uma ‘voz de comando’. E de onde é que isto está a sair? Está a sair de onde sempre esteve: durante a II Guerra Mundial, nos debates à escala internacional, a questão, mesmo nas democracias que se opunham ao nazismo, era se uma ditadura não seria muito mais eficaz a mobilizar os seus soldados, a dar-lhes moral para enfrentar os inimigos. Em pleno século XXI está a voltar à superfície este elogio permanente do autoritarismo, da tal ‘voz de comando’”, compara.
O que mais preocupa o historiador é perceber que, à boleia da covid-19 tal como à boleia da crise dos refugiados há uns meses, grassa a ideia de que a complexificação das relações sociais e dos problemas sociais e políticos requer um “comando forte”. “Essa crítica nacional-populista ao funcionamento da democracia, que não dispensa uma retórica oportunista e retórica de mais democracia, foi o que levou Bolsonaro ao poder e foi o que deu força ao Orbàn na Hungria e ao Putin na Rússia”, insiste o historiador, para quem, ao reavivar medos ancestrais, a covid-19 pode “reforçar discursos de natureza messiânica ou autárcica, que, perante um vírus que vem de fora, defendem que o país tem é de se fechar sobre si próprio”.
Submergidas pelo pânico social, as pessoas tornam-se permeáveis a que os seus direitos sejam erodidos. “A lógica de que os países têm de fechar o contacto com os outros é uma discussão que em 2017, logo a seguir à tomada de posse de Donald Trump, e, do dia para a noite, esse passo foi dado”, situa Loff, referindo-se à decisão do Presidente norte-americano “fechar” todos os voos provenientes da Europa. A Itália, por seu turno, “isolou-se a si própria, com este estado de emergência que tem efeitos de natureza policial e militar”, aponta ainda o historiador, dizendo-se convencido de que, “criados os mecanismos legais, todas estas medidas terão impactos duradouros”.
“Se incorporarmos este estado de emergência dentro das nossas cabeças, ninguém se lembrará de ir perguntar ao Estado quando é que isto acaba. E efectivamente os processos de securitização de áreas da nossa vida, colectiva e individual, só têm sucesso quando a sociedade os entende como naturais e conclui que a democracia deixa de se aplicar porque o momento é de excepção”, prossegue o investigador, subscrevendo as teorias do filósofo italiano Giorgio Agamben, que no livro Estado de Excepção (Edições Setenta, 2018) conclui que um dos problemas é que o mundo vive em permanente estado de excepção, pelo menos desde os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. “A ideia que perdura desde então”, conclui Loff, “é que sempre que temos um ataque terrorista temos que suspender a Declaração Universal dos Direitos do Homem, permitindo, por exemplo, detenções vigilâncias de pessoas sem necessidade de qualquer autorização judicial”. No caso português, “é sintomático que uma das primeiras discussões suscitadas pela covid-19 visava perceber se, à luz da Constituição, o Estado tem ou não direito de impor determinadas práticas de reclusão domiciliária”, recorda Luís Aguiar-Conraria, para acrescentar que, se se concluir que não tem, “de certeza absoluta que, bem ou mal, na próxima revisão constitucional isso é alterado”. E assim “ficaremos com mais um exemplo de como as crises são aproveitadas para erodir direitos e tornar as sociedades menos liberais”.