Pensar o futuro – ecologia social em tempos de pandemia
O modelo económico baseado no crescimento permanente tem uma enorme barreira à sua frente, pelo que se impõe pensar em modelos alternativos e a ecologia social pode oferecer respostas.
Pensei antes de escrever este texto se este seria o momento indicado para o fazer. Estamos em pleno momento-chave na luta contra a covid-19 e as consequências, a nível nacional, europeu e global, estão ainda longe de ser claras. Os receios, as dúvidas e a tensão são quase palpáveis – eu próprio, com vários familiares diretos nos grupos de risco, não tenho conseguido dormir tranquilo. Há um sentimento de medo, provavelmente justificado, que, ainda mais rapidamente que o próprio vírus, se vai disseminando pelo planeta. As ficções literárias inspiradas na propagação de uma qualquer peste – e vem-me imediatamente à mente o Ensaio sobre a cegueira de Saramago, A Peste de Camus ou Rinoceronte de Ionesco – mostram como o medo, ainda mais que a própria doença, pode ser determinante. Mas o medo, esse sentimento tão poderoso e tão incontrolável, pode também ser inspirador e impulsionador de um futuro melhor.
O medo coletivo coloca-nos face-a-face com as nossas limitações enquanto espécie e enquanto sociedade. E se é verdade que a humanidade tem desde sempre tentado controlar o meio onde se insere, também o é o facto de apenas nas últimas décadas se ter imposto uma visão de domínio absoluto da humanidade sobre a natureza, uma visão intimamente ligada à defesa da possibilidade (e necessidade) de crescimento económico permanente.
Num planeta finito, tanto a nível de recursos como a nível da capacidade de absorção da poluição, para que esse crescimento possa continuar sem impactos ambientais, a separação entre crescimento e impactos tem de ser conseguida. Ora, uma vez que esta separação está longe de ser real, os que defendem um modelo de crescimento permanente argumentam que tal será conseguido com mais tecnologia, incluindo processos de geo-engenharia. Assim, de modo a confirmarem esta sua possibilidade, a dominação e controlo do meio natural é vista como uma necessidade. Como a pandemia atual nos vem relembrar, mesmo que tal fosse desejável – o que está longe de ser uma certeza – a humanidade está a uma enorme distância de conseguir controlar o seu meio natural. O modelo económico baseado no crescimento permanente tem, portanto, uma enorme barreira à sua frente, pelo que se impõe pensar em modelos alternativos e a ecologia social pode oferecer algumas respostas.
Devo, chegado a este ponto, fazer duas pequenas notas que servem também para distinguir a visão da ecologia social de outras abordagens ambientalistas. A primeira é que a evolução tecnológica não deve ser rejeitada, devendo até ser fomentada; no entanto, contrariamente ao que afirmam os que defendem um modelo de crescimento permanente (incluindo crescimento verde), a tecnologia não deve ser vista como a única solução nem, sobretudo, como desculpa para insistir num modelo económico catastrófico para o planeta. A segunda nota é a rejeição terminante de uma qualquer visão anti-humanista que vê nesta ou numa qualquer outra pandemia a natureza a corrigir os excessos do ser humano. Esta visão, para além de intrinsecamente racista e classista, uma vez que serão os mais pobres e o Sul global que mais sofrerão as suas consequências, é também injusta, pois se apenas uma pequena parte da humanidade tem responsabilidades desmesuradas nos impactos ecológicos, será precisamente essa parte que mais facilidades terá em evitar as suas consequências negativas.
Numa ilustração de Soulcié publicada a 10 de março e intitulada “o verdadeiro perigo do confinamento”, vê-se um pai, com cara de surpresa alegre, a preparar uma refeição com o seu filho e dizendo “mas… afinal está-se bem em casa... e o meu trabalho é inútil… mas… que parvo é este mundo!”. Passando o exagero de se poder esquecer que o verdadeiro perigo é a morte ou o aumento da precariedade de milhares de pessoas, esta ilustração é paradigmática e deixa clara uma discussão que, em sociedade, teremos de ter no pós-crise de covid19.
Com milhares de pessoas de pessoas a trabalhar remotamente, com aulas a serem dadas à distância, com muitos voos a menos, com fábricas paradas ou a meio-gás, esta crise obrigar-nos-á a repensar muitas das nossas certezas. Ironicamente, como um artigo publicado na revista Forbes refere, estas medidas acabarão por salvar mais vidas pelo que pressupõem na redução de poluição do que pelas vidas salvas do vírus propriamente dito. Mas se estas medidas são bastante mais radicais do que aquelas que os ecologistas defendem para que entremos numa rota de sustentabilidade ecológica, por que razão nunca as conseguimos aplicar, ao contrário das medidas de combate à covid-19? Por duas grandes razões: a falta de medo e a falta de um imaginário alternativo.
As múltiplas crises ecológicas, com as alterações climáticas à cabeça, não conseguem causar o mesmo nível de medo que uma pandemia como a da covid-19 pois, apesar do conhecimento relativo às suas consequências negativas, estas parecem distantes, geográfica e temporalmente. Daí a relevância da já referida ilustração. Obrigados pelo medo a mudar as práticas do quotidiano, não é de todo impossível que se consiga mudar o imaginário, em particular em relação ao papel que o emprego representa nas nossas sociedades.
O que propõe então a ecologia social? Desde logo, propõe uma sociedade pós-crescimento onde a prioridade seja a prosperidade partilhada e não o crescimento a todo o custo. E à pergunta sobre como se consegue isso responde: desacelerando o ritmo de vida e promovendo políticas de decrescimento sustentável. Fomentando modos de vida mais conviviais, a ecologia social propõe que se revejam as escalas da nossa ação, propondo uma espécie de localismo cosmopolita. Propõe um modo de vida mais frugal e mais cooperativo, apostando na ajuda mútua e na partilha, possivelmente apoiando por um rendimento básico incondicional. Propõe ainda que se reduza drasticamente o número de horas dedicadas ao emprego, passando-as para outros domínios onde nos consigamos cumprir enquanto cidadãos e indivíduos autónomos.
Isto não será conseguido de um dia para o outro e implica uma série de transformações profundas, desde logo ao nível da educação, para que as escolas deixem de ser uma simples correia de transmissão de um sistema assente na necessidade de crescimento, formando cidadãos críticos em primeiro lugar.
E se, à custa do medo, deixássemos de ter medo de imaginar outros futuros?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico