Nuno Diniz abre o seu primeiro restaurante. É uma Revolução
Aos 60 anos, o professor e chef Nuno Diniz vai abrir restaurante em nome próprio. Provocatório, tem coisas para dizer e não apenas sobre comida. Assume-se revolucionário e, como sempre, imune ao politicamente correcto. “Este é um restaurante para comer, não para dar espectáculo.
Chama-se Revolução e não é por ficar no primeiro andar da Associação 25 de Abril, em Lisboa. É porque o que Nuno Diniz aqui quer fazer é uma pequena (ou grande, depende da perspectiva) revolução no actual estado da cozinha em Portugal.
Há vários princípios neste processo revolucionário em curso, com abertura oficial prevista para dia 10 de Março: o primeiro é que a equipa (oito pessoas), que assegura tanto a sala como a cozinha, é composta exclusivamente por antigos e actuais alunos de Nuno Diniz no seu curso de Culinary Arts na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. E, sublinha o chef, “todos são pagos”, incluindo quem vier estagiar.
Segundo princípio: “Os meus cozinheiros vão trabalhar oito horas por dia e ao fim de oito horas, se por acaso for necessário trabalhar mais, estaremos a pagar horas extraordinárias.” Para Nuno Diniz, uma das coisas mais chocantes nas cozinhas de hoje é a ideia de que “há horas para entrar, mas não há horas para sair”. Não poupa as palavras, como é seu hábito: “Isso é tão selvagem, tão anormal, tão boçal, que não consigo entender como é que alguns o dizem com um ar orgulhoso, quando devia até causar vergonha.”
Terceiro princípio: os produtores vão ser pagos e reconhecidos. Isso significa que o Revolução vai ter “os melhores produtos” e, na ementa, o nome de quem os produz. Nuno brinca dizendo que se as pessoas acharem o prato mau, ele pode sempre dividir a responsabilidade com os produtores. E, como o produto é bom, é fundamental não desperdiçar nada. “Não podemos estragar, se temos espinhas temos que pensar que vamos fazer um caldo, e com aquele caldo, uma açorda.”
Famoso pelos seus cozidos com enchidos de todo o país e autor do livro Entre Ventos e Fumos, o professor e cozinheiro, que esteve à frente de restaurantes mas nunca teve um em nome próprio, decidiu aos 60 anos aceitar o desafio que lhe foi lançado pelo (agora) sócio Rodrigo Menezes, com quem tinha já colaborado no projecto Mesas Bohemia, e avançar para o Revolução.
A ideia surgiu porque estava livre o espaço no primeiro andar do icónico edifício da Rua da Misericórdia, que durante o Estado Novo abrigou o jornal A Época (dirigido por Barradas de Oliveira, curiosamente tio-avô de Nuno Diniz) e onde hoje funciona a Associação 25 de Abril.
Se no andar de baixo há cartazes revolucionários e cravos vermelhos, na sala do restaurante o ambiente é mais neutro e despido, com alguns quadros nas paredes, e as cadeiras, mesas e candeeiros desenhados pelo arquitecto Álvaro Siza Vieira. Não é preciso mais – a sala é dominada pelas belíssimas janelas em arco, através das quais vemos o movimento da Rua da Misericórdia, com os eléctricos a passar.
“Quando me apareceu esta proposta, a minha resposta foi não, é sempre não”, conta Nuno Diniz. “Costumo dizer que sinto a tentação de ter um restaurante umas dez vezes por ano, dura geralmente três segundos, porque penso na vida que tenho e na que vou passar a ter e a tentação desaparece.” Desta vez foi diferente, não só porque sempre se deu muito bem com Rodrigo Menezes, como achou que podia (e queria) trabalhar com os seus melhores alunos.
“Decidi que toda a brigada iam ser pessoas que falam a mesma língua que eu e não ia perder tempo a explicar todas as coisas que eles já sabem que me irritam, os tiques todos que existem e para os quais não tenho paciência.” A ideia de os fazer rodar entre a sala e a cozinha é, para além de um exercício de humildade, uma forma de garantir que tudo o que é dito aos clientes é-o por pessoas que sabem do que estão a falar.
A brigada é composta apenas por homens – e Nuno sabia já que esta era uma pergunta que acabaria por surgir. “O politicamente correcto passa-me ao lado. Só há poucas mulheres aqui porque há poucas mulheres neste mundo. Não convidei ninguém, houve 50 pessoas que pediram para vir trabalhar comigo e nenhuma era mulher. Estar a colocar uma mulher só por ser mulher, não. As pessoas para mim são completamente iguais e dividem-se entre competentes e incompetentes.”
Provavelmente, se tivesse aberto o seu primeiro restaurante há vinte anos, tudo teria muito mais a ver com o ego. Quem conhece Nuno Diniz sabe que é insuspeito de ter pouco ego – algo que o próprio reconhece facilmente. “Tenho uma claríssima noção do meu ego e tento combatê-lo. Não o quero perder, mas não quero esmagar as pessoas com ele. Aliás, é impossível, seja em que profissão for, subsistir sem qualquer tipo de ego. E nesta profissão há uma tendência gigantesca para o ego ficar absolutamente descontrolado.”
Diverte-se a pensar no que teria sido um restaurante seu há 20 anos: “Chamava-se Nuno Diniz, os cozinheiros chamavam-se Nuno Diniz, usavam todos uma coisa a dizer Nuno Diniz.” Aos 60 anos, está diferente. “Precisamos de tempo para pensar, para começar a fazer alguma introspecção. A escola abriu-me muito os olhos para o facto de haver pessoas que precisam de nós.” Por isso, no Revolução “os clientes vão saber os nomes da brigada”. “Aqui somos todos iguais, embora eu saiba mais do que eles.”
E, apesar do espírito revolucionário, “isto é um negócio”: “Se não resultar, fechamos”. O que Nuno Diniz pretende é provar que é possível. “Tenho ordenados para pagar, e não vou ficar a dever um tostão aos produtores. Pago. Se der dá, se não der, não faz sentido. Mas se der, alguém vai ter que explicar por que é que os outros têm que ter 40 estagiários à borla.”
Uma “cozinha de liberdade”
Esta é uma Revolução pela liberdade. Nuno Diniz não se cansa de o dizer. A cozinha é portuguesa, os ingredientes são produzidos em Portugal (“adoro foie-gras mas aqui não vai haver foie-gras”). “Os pratos”, resume, “são aquilo que tenho vindo a definir ao longo dos anos de maneiras muito diferentes mas que significam o mesmo, a ‘tradição tolerante’, a ‘memória desfocada’ ou a ‘cozinha popular elitista’”.
Na prática? Um exemplo do que será a ementa na primeira semana: os filetes de pescada da Inês Dinis com arroz de berbigão; massada como em Vila do Bispo; galo estufado em Douro Tinto com arroz de forno; sopa de alheiras; bacalhau albardado da Borralheira; canja de pombo bravo com nabos (para David Lopes Ramos, antigo crítico gastronómico do PÚBLICO); leite Serafina; sarrabulho doce (que é “das coisas mais geniais que se inventou em Portugal, com sangue de porco, amêndoas e mel”); e queijos, de cabra e ovelha, da Queijaria Povolide, de Viseu. A carta de vinhos foi feita com José Silva (apresentador do programa da RTP A Hora de Baco) e tem como objectivo “fugir ao que é corriqueiro”.
Para o primeiro ano do restaurante, Nuno fez uma selecção de 90 pratos. As fichas técnicas são feitas por ele, mas está aberto a sugestões dos alunos – se forem ideias inteligentes poderão ser integradas. A única coisa em relação à qual diz não tencionar intervir é o empratamento. “Desde que não me mandem uma cabidela de galo em cima de uma cama de flores e ervas, podem fazer o que quiserem.”
Resume, bem-humorado: “Este é um restaurante para comer, não para dar espectáculo. Tudo o que existe aqui é para ser comido. Menos as cadeiras do Siza.”