Na Berlinale do futuro, o Urso de Ouro foi outra vez para o Irão
There Is No Evil, de Mohammad Rasoulof, levou o prémio máximo do 70.º Festival de Berlim, à cabeça de um palmarés decepcionante para uma competição tão rica.
There Is No Evil, do iraniano Mohammad Rasoulof, é o grande vencedor do Urso de Ouro da 70.ª edição do Festival de Berlim, que terminou este sábado. Never Rarely Sometimes Always, da americana Eliza Hittman, recebeu o Grande Prémio do Júri, Hong Sangsoo foi o melhor realizador e Paula Beer e Elio Germano levaram os prémios de representação, numa cerimónia que marcou igualmente a estreia da nova secção paralela competitiva Encounters.
Recebido em lágrimas pelo elenco e pela equipa do filme, que se deslocaram em peso a Berlim fazendo as vezes de Rasoulof, que as autoridades iranianas impediram de viajar, o anúncio do Urso de Ouro foi feito com verve quase shakespeareana pelo presidente do júri, Jeremy Irons, e aplaudido de pé pela audiência presente.
A escolha do palmarés pareceu ignorar toda a renovação 2020 da Berlinale para honrar a velha tradição de o festival premiar “filmes de tema”. There Is No Evil – que está já adquirido para distribuição em Portugal pela Leopardo Filmes – é um filme rodado em segredo sobre a pena de morte e sobre o modo como ela afecta o quotidiano comum dos iranianos, contado através de quatro histórias separadas.
Por oposição ao didactismo com que Rasoulof filma a questao, o Grande Prémio do Júri, Never Rarely Sometimes Always (distribuído internacionalmente pela major Universal), filma com determinação uma adolescente da Pensilvânia que viaja para Nova Iorque para abortar e tem de decidir sozinha o seu futuro. Subindo a palco lavada em lágrimas, a realizadora Eliza Hittman fez questão de agradecer às clínicas de aborto legal, que a moralidade conservadora americana pretende ilegalizar de novo.
O Urso de Ouro a Rasoulof – o último dos 18 filmes a concurso a ser exibido – reflecte o constante apoio do certame alemão ao cinema iraniano, que só na última década deu o seu prémio máximo a Jafar Panahi, com Táxi, ou Asghar Farhadi, com Uma Separação. E foi sem dúvida embalado pela vontade de defender um cineasta mal amado pelas autoridades do seu próprio país, e permitir-lhe uma exposição global que de outro modo não teria.
Ao entregar o Urso de Prata de melhor actriz, o actor italiano Luca Marinelli disse que “era impossível fazer uma escolha errada, mas difícil fazer a escolha certa”. E é possível olhar para este palmarés decepcionante como o de um júri – composto ainda por Annemarie Jacir, Bérénice Béjo, Bettina Brokemper, Kenneth Lonergan e Kleber Mendonça Filho – que não conseguiu fazer a escolha certa. De fora ficaram os filmes mais apaixonantes, inovadores ou desafiadores da competição (como Todos os Mortos, Days, First Cow ou Siberia; ainda assim, Irradiés, de Rithy Panh, sai com o prémio de melhor documentário, atribuído por um júri separado); foi o passado, mais que o futuro, que se voltou a premiar em Berlim.
A alemã Paula Beer foi a melhor actriz em Undine, de Christian Petzold, e o italiano Elio Germano, melhor actor no biopic do pintor Antonio Ligabue Volevo Nascondermi, de Giorgio Diritti – prémios longe de imerecidos, mas longe de corresponder às performances mais marcantes desta edição. O melhor realizador – talvez o único galardão unânime do palmarés – foi o sul-coreano Hong Sangsoo, pelo delicioso The Woman Who Ran. E o prémio de argumento coube aos irmãos italianos Fabio e Damiano d’Innocenzo, pelo seu negríssimo olhar para a Itália moderna, Favolacce.
A melhor contribuição artística pertenceu ao veterano director de fotografia alemão Jürgen Jürges, pelo seu trabalho no projecto DAU, de Ilya Khrzhanovsky. Houve ainda um Urso de Ouro especial em honra do 70.º aniversário – entregue a Effacer l’historique, da dupla francesa Benoît Delépine/Gustave Kervern, sátira de traço grosso à omnipresença das redes sociais.
Em paralelo, foram entregues também os prémios da nova secção competitiva Encounters, decididos por um júri separado. Nesta secção – onde foi estreado A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos, que sai de Berlim com o prémio FIPRESCI da Federação Internacional de Críticos de Cinema –, o galardão de melhor filme foi para a obra experimental de oito horas The Works and Days (of Tayoko Shiojiri in the Shiotani Basin), da dupla sueco-americana C. W. Winters e Anders Edström. A melhor curta-metragem foi T, da americana Keisha Rae Witherspoon, e a melhor primeira obra (transversal a todo o certame) Los Conductos, do colombiano Camilo Restrepo.
É um final doce-amargo para a melhor Berlinale dos últimos anos: coerente com o passado, mas incerto quanto ao futuro. A ver vamos, em 2021.
O palmarés do festival:
Competição Oficial
Urso de Ouro: There Is No Evil, de Mohammad Rasoulof
Grande Prémio do Júri: Never Rarely Sometimes Always, de Eliza Hittman
Realização: Hong Sangsoo por The Woman who Ran
Actriz: Paula Beer, por Undine, de Christian Petzold
Actor: Elio Germano, por Volevo nascondermi, de Giorgio Diritti
Argumento: Fabio e Damiano d’Innocenzo, por Favolacce
Contribuição artística: Jürgen Jürges, pela fotografia de DAU.Natasha, de Ilya Khrzhanovsky e Jekaterina Oertel
Urso de Ouro especial do 70.º aniversário: Effacer l’historique, de Benoît Delépine e Gustave Kervern
Encounters
Melhor filme – The Works and Days (of Tayoko Shiojiri in the Shiotani Basin), de C. W. Winters e Anders Edström
Prémio especial do júri – The Trouble with Being Born, de Sandra Wollner
Melhor realizador – Cristi Puiu, por Malmkrog
Documentário (transversal às várias secções)
Irradiés, de Rithy Panh
Primeira obra (transversal às várias secções)
Los Conductos, de Camilo Restrepo
Curtas-metragens
Urso de Ouro – T, de Keisha Rae Witherspoon
Urso de Prata – Filipiñana, de Rafael Manuel
Prémio Audi de Melhor Curta-Metragem – Genius Loci, de Adrien Mérigeau