As “Alexas do mundo” gravam o que não deviam? A “pulseira do silêncio” pode resolver o problema
A “pulseira do silêncio” emite ultra-sons para interferir com os receptores dos telemóveis. Pedro Lopes, que co-assina o protótipo, interessa-se há muito pela forma como “os equipamentos do futuro” vão mudar o modo como “interagimos uns com os outros”.
OK, Google. Hey, Siri. Alexa! Depois de qualquer um destes “gatilhos” (dependendo da marca e do modelo), o nosso telemóvel começa a fazer um registo do que lhe dizemos para conseguir falar connosco. Podemos perguntar qual é a previsão do tempo para o fim-de-semana, quão caótico está o trânsito lá fora ou como ficaram os jogos de ontem; ele vai responder. Mas e se os pequenos amiguinhos que carregamos nos bolsos gravarem mais do que desejaríamos? E se as nossas conversas privadas caíssem nas mãos (e nos ouvidos) de outras pessoas? E se soubéssemos menos sobre cibersegurança do que aquilo que julgamos? Uma equipa da Universidade de Chicago – que conta com um investigador português – concebeu uma “pulseira do silêncio” para combater estes perigos. Uma invenção especificamente desenhada para impedir os assistentes inteligentes de nos gravarem quando não queremos.
“Não é um dispositivo complicado”, explica o professor Pedro Lopes, por telefone, entre aulas e reuniões nessa instituição de ensino. Entre 12 e 24 altifalantes — os responsáveis pelo protótipo já experimentaram os dois formatos — emitem ultra-sons criados por um pequeno gerador. Um microcontrolador consegue “moldar” esta onda, cuja frequência vai dos 24.000 aos 26.000 Hertz (Hz). A cada milissegundo, há uma variação, ficando assim “muito difícil criar uma defesa” capaz de dar a volta ao aparelho. O ruído atrapalha os microfones e receptores dos telemóveis, que não são capazes de captar com clareza o som da sala ou das conversas. “É como gritar muito alto em ultra-som.”
Esta pulseira, para a qual não existe um plano de comercialização, começou a ser pensada por Heather Zheng, professora de Ciências Computacionais na Universidade de Chicago, há cerca de um ano e meio. O marido Ben juntou-se não muito tempo depois; Pedro Lopes entrou quando o processo “deixou de ser teórico”. Um projecto de investigação que nasceu da vontade de “fazer do mundo um lugar mais seguro em termos de comunicação digital”. Ao mesmo tempo, descobríamos que, se calhar, os nossos telemóveis gravavam demasiado bem – mesmo quando (pensávamos que) não tinham permissão.
Será que a Siri nos ouve “constantemente”?
Preocupações relacionadas com o funcionamento dos assistentes inteligentes já não são novas por esta altura. Em Julho de 2019, o The Guardian noticiou que a Apple recolhia fragmentos de áudio dos utilizadores para melhorar a capacidade de a Siri “compreender o discurso humano”. A empresa norte-americana terá tido acesso a “informação médica confidencial, tráficos de droga e gravações de casais a fazer sexo”. E, em muitas ocasiões, revelou um denunciante ao jornal britânico, os smartphones gravavam mesmo sem a clássica frase para “acordar” o dispositivo.
Aqui está a grande falha (ou o “plot hole”, brinca Pedro Lopes — com os anos em Chicago, os estrangeirismos já lhe são naturais) nesta história. “Se a Siri ou a Alexa ‘acordam’ é porque têm de estar a ouvir constantemente.” Depois, há o velho problema: nós, os utilizadores comuns, nunca sabemos muito bem o que é feito à informação recolhida. Se calhar, ela é “processada dentro do dispositivo”; ou se calhar, os telemóveis “enviam tudo pela cloud para o servidor fazer o nosso reconhecimento de voz”, deixando dados a flutuar no éter digital. “As interfaces são desenvolvidas de forma não muito clara” e, naturalmente, também não ajuda o facto de “não lermos os termos e condições das coisas”.
De qualquer das formas, a “pulseira do silêncio” surge como uma forte protecção para irritar os ouvidos das “Alexas do mundo”. O professor e investigador português de 33 anos reconhece que há “projectos anteriores” que descobriram na emissão de ruído não audível por seres humanos um eficaz instrumento para “anular e contrariar microfones”, mas mesmo os que saíram dos laboratórios e passaram para o mercado correspondem a dispositivos fixos. “Tinhas de ter um em cada sala para estares sempre seguro.” A equipa comandada por Heather Zheng é, então, a primeira a transformar esses dispositivos em “utensílios que podes vestir”.
E não é só na portabilidade que se esgotam as vantagens. Os altifalantes de um bloqueador fixo, explica a Universidade de Chicago, “cancelam-se” a partir do momento em que o seu raio de alcance se cruza, criando as chamadas “zonas mortas”, áreas nas quais não são emitidos os ultra-sons. Quais são as implicações disto? Um telemóvel que estrategicamente “apanhe” uma zona morta não encontra qualquer tipo de oposição por parte do dispositivo de protecção. Ou seja, recolhe os sons em redor como se nada fosse. Um problema que não se coloca com a pulseira. Os micromovimentos do corpo, esclarece Pedro Lopes, “fazem com que as zonas mortas também se mexam”, minimizando as mesmas — e maximizando a segurança.
As máquinas do futuro sonham com impulsos eléctricos?
A ideia de desenvolver ferramentas, “não dentro do bolso ou em cima da pele mas integradas no corpo”, não é, de resto, nada de estranho para o investigador português, que começou a estudar “as possíveis relações pessoa-máquina” durante o mestrado, no Instituto Superior Técnico. Quando, já no Instituto Hasso Plattner — faculdade de tecnologia da informação da Universidade de Potsdam, em Berlim –, começou o doutoramento, Pedro Lopes voltou as atenções para “o que podem fazer os equipamentos do futuro”. “E se em vez de aprender a tocar piano, por exemplo, tivesse um dispositivo que me ligasse aos músculos, para que automaticamente manipulassem o instrumento por mim? Estamos a falar de uma forma completamente nova de conhecimento.”
O Affordance++ é um de vários protótipos que o professor já co-assinou. Através de pequenos impulsos eléctricos que condicionam os movimentos do utilizador, diferentes objectos ditam a forma como devem ser “manuseados”. Não conseguimos usar a lata de tinta se não obedecermos ao comando que nos diz para a abanarmos primeiro. No projecto Impacto, por outro lado, contactos físicos são simulados em experiências de realidade virtual. Se, por norma, esta é “sempre convincente em termos visuais”, percebemos que “é tudo falso” a partir do momento em que “não conseguimos apanhar aquela caixa” ou “o nosso braço atravessa a parede”. Aqui, sentimos os pontapés que damos na bola e recuamos quando damos de caras com um obstáculo. Quando o programa detecta uma colisão, cria “uma força invisível contrária ao movimento” que fazemos.
Usar a electricidade para “falar” com o corpo, recorda o responsável pelo laboratório de investigação no departamento de Ciências Computacionais da Universidade de Chicago, é um conceito antigo, que vem do campo da medicina. Pessoas que não tinham ou haviam perdido as capacidades físicas necessárias para flectir e esticar os membros autonomamente recebiam estímulos que tentavam ajudar a contrariar essa dificuldade. Paraplégicos “podiam, eventualmente, recuperar algum movimento, ainda que de uma forma muito crua”. Ao passo que os médicos ligavam os eléctrodos “à máquina que ficava ao lado”, os de Pedro Lopes são “vestíveis”.
O português recebe “um email por semana” para comercializar estas inovações. Tal como a pulseira do silêncio, ainda nenhuma chegou à fase de produção em massa. “Não sei se tenho tempo e interesse para isso”, confessa. É no processo de descoberta que o professor gosta de se concentrar. Se, há qualquer coisa como 20 anos, “não acreditávamos que andaríamos por aí com telemóveis nos bolsos”, o investigador quer saber que invenções fascinantes serão os nossos dispositivos de eleição daqui a mais 20 ou 30. O fundamental é entender de que maneiras elas mudarão a forma como interagimos com a tecnologia – e, naturalmente, “a forma como interagimos uns com os outros”.