Eutanásia: insisto, um sereno “não”
Ao debate português, falta maturação, pluralidade, amplitude e tempo. Lamento e verbero a pressa inusitada do Parlamento.
1. Consciência, “con-sciência”
Todos já lidámos, estamos a lidar ou teremos de lidar, de uma maneira ou de outra, junto dos que amamos e dos que simplesmente nos rodeiam, com a morte, a doença, o sofrimento. Todos conhecemos situações dificílimas e duríssimas de doença (terminal ou não), de enorme sofrimento físico e psíquico, de quase total alienação ou ausência de um nosso próximo. São situações muito complexas e delicadas, que mexem com o mais fundo de nós, com a essência da humanidade e da vida, com as mais belas e as mais sombrias emoções e convicções. Não devemos nem podemos arrumar a questão da vida e da morte, da doença e do sofrimento, do amor e da compaixão, da dignidade e da indignidade, do humano e do desumano, num debate redutor e simplista, num dogmatismo lauto e primário. Creio que devemos fazer silêncio, falar baixinho, estudar, conhecer, pensar, ponderar, sentir, respirar. Ouvir, ouvir e escutar, escutar. E pacientemente, serenamente, deixar que a consciência – não no sentido de “com ciência” ou “com saber”, mas no sentido de “ciência com”, de “saber com”, de “saber com o outro”, de “sageza partilhada”, de “sentido comum”, de “ciência fraterna e solidária” – nos fale, nos murmure, nos interpele.
2. Nem tudo é eutanásia
Este processo de escuta e debate é especialmente difícil, por haver muita confusão conceitual, muito “tribalismo” de rede social e muito, mas mesmo muito, preconceito. Muitíssimos dos casos que tantos julgam cair ou recair no domínio da eutanásia consubstanciam afinal situações pacíficas de recusa de tratamento excessivo e desnecessário, que, a ocorrer, redundariam em pura obsessão terapêutica.
3. Não há direito à morte
Disseminou-se a ideia – e também a terminologia (as palavras fazem caminho e imprimem “carisma”) – de que, entre os direitos e as liberdades, figuraria um direito de nova geração, um direito de “última geração”: o direito à morte. Não vislumbro como filosófica, antropológica ou juridicamente possa subsistir um tal “direito”, uma símile “liberdade”. Argumenta-se habitualmente com o suicídio, que seria uma liberdade individual e cuja tentativa não é sequer punida pela ordem jurídica. Se o suicídio fosse uma liberdade, se a pessoa tivesse o direito de se matar, então deveria ter também o direito de pedir a morte – alega-se. Eis o fundamento e o substrato do direito à morte. Mas o suicídio não é nem uma liberdade nem um direito. É uma mera possibilidade fáctica. Tal como o homicídio, que, sendo proibido, nem por isso deixa de ser cometido. Quando a ordem jurídica não pune a simples tentativa de suicídio, isso não significa que reconheça a liberdade da pessoa se matar. Não. Ela não pune a tentativa de suicídio – o suicídio falhado –, porque a pena a aplicar seria ineficaz e contraproducente. Como é óbvio, prender alguém que se tentou suicidar em nada contribuiria para evitar e combater o suicídio. Não há um direito a morrer por acção própria. Muito menos deve aceitar-se um direito a morrer por acção alheia.
4. Dignidade vs. Indignidade
Muitos dos que defendem a eutanásia legalizada põem a questão no patamar da dignidade, da morte digna ou indigna. Mas vale a pena meditar sobre esta dicotomia “digna-indigna”. Ninguém, nenhum ser humano, perde dignidade por estar doente, por ter uma deficiência, por estar incapaz, por estar agonizante. Continua a ser uma pessoa, um semelhante, um próximo, em tudo igual aos demais e, em especial, na sua dignidade enquanto ser humano. Haverá decerto sofrimento que nos parece intolerável, inaceitável e absolutamente injusto, mas ele em nada reduz a dignidade da condição humana. Não há mortes dignas nem indignas, porque a dignidade está na pessoa que morre, não no acto ou no processo da morte, por mais violento ou trágico que este se afigure.
5. O exercício prático: riscos e irreversibilidade
De um ponto de vista prático, a maior objecção à eutanásia é a sua irreversibilidade. Argumento que, aliás, em caso diverso – o da proibição da pena de morte – ajuda a convencer muitos dos que até aceitariam a pena capital. Para a eutanásia, porque é morte, não há remédio nem reversão. A eutanásia, nunca é demais lembrá-lo, é sempre irreversível. Que garantias temos da lucidez e consciência do pedido? Que garantias temos da absoluta fidelidade daqueles que a aceitam executar? Que vemos nós nas experiências comparadas da Bélgica e da Holanda? O risco de extensão informal das situações permitidas e de normalização ou banalização são óbvios. O risco de abusos e de enganos também. E mais, sistemicamente, que dizer da evolução de um serviço nacional de saúde que ofereça como solução plausível a eutanásia?
6. O argumento “ad terrorem”: a religião
É triste a disseminação do argumento “papão” de que quem está contra a legalização da eutanásia está dominado por uma visão religiosa e sagrada da vida. Pode até estar, alguns estarão, e se estiverem, qual é o mal? Têm todo o direito a estar. Mas quem está a favor da eutanásia também tem uma concepção da vida e uma mundividência pessoal, religiosa ou para-religiosa, que quer fazer valer no espaço público, impondo a sua concepção moral, filosófica ou antropológica.
7. Um “não” sereno
Por tudo isto e muito mais que não cabe aqui, no dia em que celebro a vida, renovo, quase com as mesmas palavras, o que outrora escrevi: sou serenamente contra a eutanásia. Ao debate português, falta maturação, pluralidade, amplitude e tempo. Lamento e verbero a pressa inusitada do Parlamento português, de alguns dos seus partidos e deputados. Esta não é uma questão de sacristia, mas não pode passar a ser uma simples questão de secretaria.
8. Para lá do tempo e do espaço
Noutra dimensão, já fora da conjuntura espácio-temporal, fica um juízo do nosso tempo, da voragem, da vertigem, da materialidade, do utilitarismo, dos tabus. Não será afinal tudo isto um afloramento de um desejo ancestral, humano e paradoxalmente religioso, de matar a morte?
SIM Marega. O gesto inédito e corajoso de abandonar o terreno de jogo em nome do valor da igualdade entre todas as pessoas, qualquer que seja a sua raça, é um enorme serviço ao país e ao desporto.
SIM Tozé Martinho. Um dos grandes impulsionadores da ficção nacional, como argumentista e como actor. A televisão portuguesa não seria mesma sem a sua paixão e, já agora, a sua discrição.