Nove anos depois, o filme Contágio volta aos tops. O culpado: coronavírus

O filme de ficção científica, que se estreou em 2011, regressou aos tops de filmes mais vistos em pleno surto do coronavírus. Há uma razão: em alturas de “receio e pânico”, as pessoas procuram cessar estes sentimentos “através destas pseudo-tentativas de controlo”, diz psicóloga.

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Claudette Barius/ © 2011 Warner Bros. Entertainment Inc.

Contágio, filme de 2011 realizado pelo vencedor de um Óscar Steven Soderbergh, regressou ao top 100 do iTunes dos Estados Unidos, volvida quase uma década desde a sua estreia, aponta a Hollywood Reporter. A renovada popularidade estendeu-se a Portugal, tendo estado a película no top nacional da plataforma no início da semana. Actualmente, ainda é possível encontrá-la na posição 22 nos EUA, na 17 do Reino Unido e, sem surpresas, na 4.ª posição em Hong Kong.

O timing é oportuno, numa altura em que o novo coronavírus grassa pelo mundo, contando-se já mais de 28 mil infectados e mais de 560 mortes. Nas redes sociais, já há quem tenha dado conta deste fenómeno — no Twitter, acumulam-se comentários irónicos. “Estamos a viver o filme Contágio”, diz um utilizador, uma película que se tornou “um documentário”, remata outro.

Protagonizado por actores premiados pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, como Matt Damon, Kate Winslet e Marion Cotillard, o filme retrata a propagação de um vírus mortal, enquanto especialistas e autoridades de saúde tentam identificar a doença, ao mesmo tempo que a sociedade entra em descontrolo com a pandemia. A história começa com o regresso a casa da paciente zero, Beth Emhoff, interpretada por Gwyneth Paltrow, engripada de uma viagem em trabalho a Hong Kong. Rapidamente morre, assim como o seu filho — e a epidemia começa a espalhar-se pelo mundo.

“Trata-se de percepcionar o risco e carências de eficácia”

A adesão a obras como Contágio nestes momentos de crise “tem que ver com o desconhecimento que surge nestas situações”, segundo conta ao P3 a psicóloga Sílvia Freitas. Em alturas de “mais receio e pânico”, as pessoas “procuram cessá-los através destas pseudo-tentativas de controlo”, explica – pretendem, assim, “tranquilizar factores emocionais”, ao “conhecer realidades [semelhantes]”.

“Não é propriamente através dos filmes que vamos obter informações, apesar de algumas poderem ser retiradas”, salienta a psicóloga. “O medo e o desejo estão muitas vezes correlacionados, e frequentemente as pessoas em situações de mais forte ansiedade, em vez de se afastarem do estímulo que as assusta, procuram entendê-lo melhor.”

A um nível mais profundo, o fenómeno remete para “as vulnerabilidades do ser humano, como o medo de morrer, de ter de lidar com uma situação assim de um ponto de vista pessoal”, num momento em que podem não existir informações que reconfortem. “Trata-se de percepcionar o risco e carências de eficácia [dos serviços de saúde e da comunicação social], de procurar atitudes que ajudem a contornar.”

Contágio tece também alguns paralelos com a actualidade, que ainda não eram tão comuns há nove anos, como o fenómeno da desinformação. A personagem de Jude Law, Alan Krumwiede, vende online uma “cura” homeopática contra o vírus. Finge inclusive tê-lo contraído e automedica-se para tentar fazer negócio. A manipulação do medo, muitas vezes com vista a ganho financeiro, reflecte muitas partilhas online sobre o coronavírus, o que tem, aliás, inspirado artigos que desmascaram falsidades na Internet.

O cuidado com as fake news que circulam em paralelo ao surto, muitas vezes motivadas por estas obras de ficção, é fundamental para Sílvia Freitas – “é muito perigoso, podem realmente ser angustiantes e criadoras de mais ansiedade” e, consoante a magnitude do evento, “conduzir a manifestações psicopatológicas”. A profissional de saúde mental destaca, no entanto, que problemas psicológicos e sociais, frutos do receio, nascem muitas vezes de meras “reacções normais a uma situação anormal”.

À luz do surto do 2019-nCoV, também o jogo online Plague Inc., no qual os utilizadores têm de criar uma patologia para “acabar com a humanidade”, está a viralizar. Para a psicóloga, este fenómeno prende-se com “exactamente a mesma questão”. Estes passatempos passam por ser “estratégias de se confrontarem com as questões que são tópico do dia, comentadas por todos”. É um comportamento mais comum entre “adolescentes e crianças, em reacção a situações histéricas” – faixas etárias com maior tendência a expressar “os medos quando os sentimentos estão fora de controlo”, algo que a terapeuta refere, todavia, ser apenas uma generalidade.

Uma obra de (relativa) ficção científica

O Business Insider explora em detalhe as semelhanças entre o filme de Soderbergh e o surto 2019-nCoV. Entre elas, a especulação de que o vírus terá sido passado de um morcego, o que acontece no filme, assim como o mapeamento médico do código genético do fictício MEV-1, espelhando a rapidez com que os peritos de saúde pública da China também já partilharam o do 2019-nCoV.

As diferenças, no entanto, têm maior peso. Em Contágio, as primeiras vítimas do vírus morrem em dois dias, enquanto a primeira morte do coronavírus só aconteceu ao fim de 11. Estamos também bem longe dos 26 milhões de mortes registadas ao 29.º dia na ficção de Steven Soderbergh — já passou mais de um mês desde o aparecimento do novo coronavírus e contabilizam-se 565 vítimas mortais até ao momento. O conceito de imunidade ao MEV-1 também não pode ser aplicado ao 2019-nCoV.

Em Contágio, o vírus incide igualmente em todas as faixas etárias; o novo surto do coronavírus ataca maioritariamente indivíduos de meia e terceira idade. O valor R0 de um vírus (a quantidade de pessoas a que, em média, um doente pode transmiti-lo) é, segundo indica a Organização Mundial de Saúde, de 1,4 a 2,5; no filme, o MEV-1 tinha um R0 de 3 a 5 pessoas.

À época do lançamento, em Setembro de 2011, Carl Zimmer, escritor e divulgador de ciência, elogiou o filme, em particular a “reconstrução da cronologia de um surto”, que “pode ajudar a travar o seu futuro”. Em declarações à Slate, enalteceu ainda a obra, todavia com um final relativamente feliz, “por retratar os funcionários dos serviços de saúde pública como heróis”. 

Já para Soderbergh, o filme é “ultra-realista”. “Estava à procura de algo que fosse perturbador, por causa da banalidade da transmissão”, disse ao New York Times. A ideia era “juntar muitas estrelas de cinema e tentar assustar muita gente”, tendo expressado o desejo de que “as pessoas saíssem da sala com um entendimento, se [a pandemia] acontecesse, do que se estaria a passar”.

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