O maior Governo português faz 100 dias com riscos de instabilidade no horizonte

No primeiros tempos, o Governo teve de apresentar um Orçamento do Estado e agora aguarda os efeitos das coligações negativas que se perfilam.

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daniel rocha

Os primeiros 100 dias da legislatura foram mais complexos de gerir para os pequenos partidos do que para o Governo. O Livre retirou a confiança política à sua deputada única, a Iniciativa Liberal mudou de líder e o Chega foi condenado pelos restantes partidos por causa de declarações racistas proferidas pelo seu deputado em relação a um par. Enquanto isso, o executivo apresentou a sua proposta de Orçamento do Estado para 2020 e, depois de negociar pontos com a esquerda, conseguiu vê-la aprovada na generalidade. Ainda assim, o processo negocial em curso indicia riscos de instabilidade a prazo.

Ao contrário do que se passou na anterior legislatura, o Orçamento do Estado para 2020 não foi desta vez aprovado com votos favoráveis do Bloco de Esquerda, PCP, PEV e PAN, mas apenas com as suas abstenções, às quais se juntaram as de três deputados do PSD/Madeira e da deputada única do Livre, Joacine Katar Moreira. Embora o novo quadro político resultante das eleições legislativas de 6 de Outubro permita agora matematicamente que um orçamento passe somente com votos do PS, desde que não tenha a oposição das forças à esquerda dos socialistas, o sentido de voto de Bloco e PCP evidencia uma maior demarcação política face ao segundo Governo minoritário liderado por António Costa.

As votações na especialidade do Orçamento do Estado começam já na segunda-feira e, durante esta fase do debate, está no horizonte a possibilidade de PSD, Bloco de Esquerda e PCP isolarem o PS na aprovação de uma proposta de descida do IVA da electricidade para consumo doméstico de 23% para 6% - uma medida que o Governo estima ter um custo anual superior a 700 milhões de euros e que considera colocar em causa o equilíbrio das contas públicas.

Coligações negativas

Aquilo que o PS caracteriza como “coligações negativas” contra o Governo, juntando direita e esquerda no Parlamento, teve já um primeiro episódio no final da anterior legislatura. PSD, CDS-PP, Bloco e PCP chegaram a um entendimento inicial para isolar os socialistas em torno da reposição total do tempo de serviço dos professores, o primeiro-ministro ameaçou demitir-se e essa proposta acabou por “morrer” na votação final.

O XXII Governo foi empossado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em 26 de Outubro do ano passado. Por opção do próprio primeiro-ministro, António Costa, e com o aval do chefe de Estado, este segundo executivo minoritário do PS iniciou funções sem qualquer acordo escrito com os parceiros parlamentares de esquerda da anterior legislatura.

O Bloco de Esquerda estava disponível para procurar um acordo escrito, mas o PCP recusou repetir a fórmula de Novembro de 2015, e o secretário-geral do PS optou por não privilegiar formalmente nenhum dos parceiros. Estas novas circunstâncias da base de apoio parlamentar ao novo Governo têm levado António Costa a deixar sucessivos avisos às forças à sua esquerda.

“O claro reforço eleitoral do PS nas últimas legislativas não dispensa o Governo do dever de promover o diálogo parlamentar e a estabilidade no horizonte da legislatura. Do mesmo modo, a ausência de uma maioria absoluta impõe aos partidos que têm sido - e queremos que continuem a ser - nossos parceiros o dever acrescido de contribuírem de modo construtivo para o sucesso deste diálogo ao longo de toda a legislatura”, afirmou na apresentação do Orçamento do Estado.

Em paralelo, António Costa também transmitiu a mensagem de que o PS quer continuar a governar com apoios à sua esquerda e que, sem eles, não será empurrado para procurar entendimentos à sua direita.

“O país disse que apreciou e validou politicamente a solução encontrada na anterior legislatura, dando agora mais força ao PS. Esta não vai ser uma legislatura em que o PS anda à deriva ou à procura de uma carochinha”, declarou.

IVA da electricidade

Na passada quarta-feira, já perante a possibilidade de Bloco e PCP apoiaram a proposta do PSD de redução do IVA da electricidade, o primeiro-ministro foi ainda mais longe nos seus avisos: “Este não é o último, o penúltimo, ou o antepenúltimo orçamento da legislatura, é mesmo o primeiro. Por isso, só quem tem mesmo muita pressa de precipitar o fim da legislatura é que pode querer ter vontade de logo no primeiro orçamento fazer tudo aquilo que se comprometeu fazer ao longo de quatro anos”, advertiu.

O XXII Governo Constitucional, liderado por António Costa, é o maior da história da democracia portuguesa, com 19 ministros, quatro dos quais com pastas de Estado (Pedro Siza Vieira, Augusto Santos Silva, Mário Centeno e Mariana Vieira da Silva), e 50 secretários de Estado. A ideia, segundo o primeiro-ministro, foi dar maior centralidade às questões da economia e permitir uma maior flexibilidade em termos orgânicos quando Portugal assumir a presidência da União Europeia no primeiro semestre de 2021.

Logo na cerimónia de posse António Costa anunciou um plano para aumentar o salário mínimo nacional para 750 euros até 2023. Para 2020, o Governo fixou o salário mínimo em 635 euros.

Também nos primeiros dias de Governo, o primeiro-ministro colocou em discussão na concertação social um acordo de rendimentos de médio prazo, tendo em vista aumentar o nível salarial da generalidade dos trabalhadores, sobretudo dos jovens mais qualificados, e melhorar as condições para a conciliação entre a vida familiar e profissional dos trabalhadores.

Semanas depois, o Governo apresentou uma proposta de Orçamento do Estado para este ano prevendo um excedente de 0,2%, um crescimento económico de 1,9%, uma descida do desemprego para 6,2% e uma redução da dívida até atingir um patamar próximo dos 100% do PIB (Produto Interno Bruto) no final da legislatura.

Orçamento 2020

Do ponto de vista político, ao nível orçamental, o Governo tem destacado o reforço do Programa Operacional da Saúde em 800 milhões de euros, verba que será acompanhada por um plano de investimentos plurianual de 190 milhões de euros e pela contratação de mais 8426 profissionais para o sector até 2021.

Além da saúde, as outras prioridades do Governo têm passado pelo impulso de políticas públicas de habitação e pela regulação do mercado imobiliário (limitação dos “vistos gold” em Lisboa e Porto e programa de arrendamento acessível), assim como pela aposta na ferrovia. Na recente reabertura das oficinas de Guifões (Matosinhos), o primeiro-ministro defendeu mesmo que Portugal deve ter como projecto o desenvolvimento de uma base industrial ferroviária, designadamente na área da manutenção e na produção de material circulante, tendo como objectivo entrar a prazo no mercado exportador.

Ainda ao nível de grandes projectos de infra-estruturas, o Governo recebeu este mês uma declaração de impacto ambiental favorável emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente para a concretização da construção do novo aeroporto do Montijo. Porém, a declaração favorável está condicionada ao cumprimento de 160 medidas de mitigação, às quais a ANA - Aeroportos de Portugal terá de dar cumprimento - medidas que ascendem a cerca de 48 milhões de euros.

Frente europeia

Na frente europeia, a principal batalha de António Costa tem passado pelas negociações em torno do "Quadro Financeiro Plurianual da União Europeia 2021-2027.

António Costa rejeita qualquer proposta que não preserve a preços correntes as verbas a transferir para Portugal nos próximos sete anos e considera que um acordo orçamental, para ser alcançado, deverá ficar entre os valores avançados pela Comissão Europeia (1,11% do rendimento nacional bruto conjunto sem o Reino Unido) e pelo Parlamento Europeu (1,3% do rendimento nacional bruto).

Nestes primeiros cem dias em funções, o Conselho de Estado autorizou o primeiro-ministro a depor por escrito no processo sobre o furto de armas na base militar de Tancos, em que foi arrolado como testemunha pelo ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes. António Costa manifestou-se disponível em depor por escrito, apesar da pressão pública exercida pelo juiz de instrução, Carlos Alexandre, no sentido de que deponha presencialmente.

Ainda em matéria de defesa, dias antes do Natal, António Costa visitou as forças da Polícia Marítima que operam no mar mediterrâneo, a partir da costa grega, no controlo de migrantes, e os militares portugueses ainda presentes no Iraque.