A Lisboa racista que Madonna não viu
Onde está a realidade? Na Lisboa crioula de Madonna, ou na Amadora da violência racial?
Num dia celebra-se, no Coliseu, em Lisboa, através do espectáculo de Madonna, a Lisboa pós-colonial, agregadora, com ginga, capaz de dançar com as diferenças e criar novas linguagens, imaginários e experiências. No dia seguinte, na Amadora, desperta-se com o Portugal da violência policial, do racismo, dos estigmas naturalizados, do “vão mas é para a vossa terra”, numa lógica segregadora. Afinal onde nos situamos hoje?
Sei das resistências que a leitura intercultural de Lisboa efectuada por Madonna pode convocar. Porque é pop, logo, supostamente, sem densidade. Pela personagem em si, como se vislumbrou por algumas notícias absurdas à sua volta. Por olhar para elementos que nos são próximos e julgamos conhecer — até a intocável Pina Bausch quando operou a partir de signos portugueses foi posta em causa. E finalmente porque deixou de lado muitas das narrativas dominantes sobre Portugal, tantas vezes repletas de restos bolorentos de colonialismo e salazarismo, dando a ver ao mundo, o que pulsa realmente aqui.
E isso irrita muita gente que vai percebendo que a auto-imagem romantizada de um país branco, de brandos costumes, pacificado com o passado colonial, vai sendo posto em causa. E é-o por portugueses negros, ou sucessivas gerações de afrodescendentes, que nos enriquecem com novas bricolagens, sotaques, modos de ser e sentir, alguns ainda difíceis de apreender no todo, porque em construção, mas introduzindo uma saudável desarrumação num país a precisar de ser abanado das suas velhas certezas.
E nesse sentido, sim, apesar de algumas fragilidades, que saudável é ver alguém da dimensão universal de Madonna interligar traços dominantes como o fado com formas culturais afrodescendentes e espaços que não correspondem ao postal ilustrado do costume, percebendo que Lisboa é crioula nas ruas, na música, nas artes, na comida, na língua ou no trato social. Ou seja, percebeu que os “outros” já não são “outros”. Somos nós. Há aspectos na sua aproximação que são um pouco simplistas? Claro que sim. Mas ainda assim a representação de Lisboa por Madonna está mais próxima da realidade do que imaginamos.
Foi capaz de vislumbrar as potencialidades da miscigenação, que parece ser um problema para uma fatia de portugueses, como se viu na Amadora, e como se vislumbra em tantos outros sintomas quotidianos. Um facto ainda mais visível desde que a negritude vai tendo cada vez mais voz e representação. E não se pense que o ressentimento provém apenas de camadas populares, enredadas numa perversa teia económica que nem sempre é apreensível, daí a expressão de impotência na forma de zanga contra aqueles que julgam diferente de si. O racismo está ancorado no sistema socioeconómico, sendo por isso mais do que uma questão de tom de pele, mas as elites também transportam os estigmas. Veja-se a discussão à volta do passado colonial.
O prisma é o mesmo. De um lado temos quem perceba que novas camadas de saber sobre um mesmo acontecimento, ou período histórico, adiciona entendimento. E do outro quem vislumbre nesse gesto uma ameaça, como se outras formas de compreensão da realidade de um passado que é presente não fossem possíveis. O desafio é, por isso, duplo. Valorize-se a Lisboa crioula, como fez Madonna, e outros antes dela, mas sem esquecer as conflitualidades e as lacunas (na saúde, habitação, emprego ou acesso à cidadania), seja na Amadora ou onde quer que seja, para uma vida colectiva sem cicatrizes ou subgrupos marginalizados. É esse o caminho que falta cumprir.