A estratégia da China no Médio Oriente
Na sua ascensão (im)parável a potência global já lhe prestou um favor inestimável: entreteve os norte-americanos durante quase duas décadas — desgastando-os em termos militares e financeiros — com duas guerras inúteis, uma no Afeganistão, a outra no Iraque.
1. Aos olhos da China, o melhor Presidente da história dos EUA no século XXI foi certamente o republicano George W. Bush. Ao envolver os EUA em duas guerras inúteis no grande Médio Oriente — Afeganistão e Iraque — retirou as atenções do mundo da ascensão chinesa deixando o caminho aberto para esta se afirmar globalmente.
É verdade que o seu predecessor democrata, Bill Clinton, também já tinha feito um grande favor às aspirações chinesas quando os EUA decidiram apoiar a sua adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC). Parecia estar convicto de que “a escolha entre direitos económicos e direitos humanos, entre segurança económica e segurança nacional, é falsa. Ser membro da OMC, é claro, não criará uma sociedade livre na China da noite para o dia, nem garantirá que a China cumprirá as regras globais. Todavia, com o tempo, acredito que isso impulsionará a China mais rapidamente na direcção certa”.
Talvez Xi Jinping ainda hoje se divirta a (re)ler o discurso de Bill Clinton proferido na Universidade Johns Hopkins, a 9/3/2000. Duas décadas volvidas, a ‘direcção certa’ da China não é a que Bill Clinton imaginava, mas a de uma potência que combina autoritarismo e capitalismo com grande sucesso.
2. Até agora, a conflitualidade endémica do Médio Oriente tem sido muito gratificante para a China. Na sua ascensão (im)parável a potência global já lhe prestou um favor inestimável: entreteve os norte-americanos durante quase duas décadas — desgastando-os em termos militares e financeiros — com duas guerras inúteis, uma no Afeganistão, a outra no Iraque.
Em ambos os casos são países ingovernáveis com os quais ninguém que aspire a criar Estados ‘normais’, sabe muito bem o que fazer. Ironias da história. Talvez os chineses estejam hoje a ter um prazer parecido ao que os EUA tiveram nos anos 1910 a 1940. Na sua segurança continental da América do Norte assistiram ao espectáculo de verem as potências europeias — em especial os britânicos, com a sua rede de interesses globais —, habituadas a dominar o mundo, afundarem-se numa sobre-extensão de impérios coloniais, de encargos financeiros e de conflitos devastadores entre si.
Hoje são os chineses que procuram tirar as vantagens de serem uma ‘nova’ potência em ascensão. Aparentemente sem um historial de ingerências externas — os EUA também não a tinham até à II Guerra Mundial, excepto na opinião dos seus vizinhos da América Latina —, levam a bandeira do respeito mútuo e da soberania estadual. Para além disso, a China tirou também ilações estratégicas sobre as intervenções militares norte-americanas e europeias do passado no Médio Oriente, Balcãs, no Mediterrâneo Sul e Norte de África: deixar o ‘trabalho sujo’ de policiar o mundo a outros.
3. A expansão global chinesa é pragmática, realista e consistente em termos estratégicos. Essa abordagem calculista é facilitada pelo facto de a China não ter intrinsecamente uma vocação universalista, nem estar imbuída de um zelo missionário que a levaria tentar expandir os seus valores e cultura para o mundo exterior. Provavelmente ficou curada de proselitismo ideológico (comunista) pela experiência traumática da ‘revolução cultural’, especialmente na fase final de Mao Tsé-Tung (Mao Zedong), que levou à morte de milhões de pessoas.
No caso do Médio Oriente, a China tem ainda outra vantagem considerável. Não carrega o fardo da rivalidade milenar entre a Cristandade e o Islão que se prolongou — desde as Revoluções Americana e Francesa do século XVIII — na rivalidade entre um Ocidente metamorfoseado em profeta secular da civilização, dos direitos humanos e da democracia (agora também do ambiente) contra os autoritarismos religiosos os seculares do Islão e resto do mundo. São fardos históricos e extravagâncias missionárias e idealistas que nada dizem à política externa nem à estratégia chinesa no mundo.
Beneficiando ainda de um passado que parece limpo em termos de pecados coloniais (não é bem essa a opinião dos vizinhos da China), e de uma ausência de zelo missionário para converter a humanidade aos seus valores (a cultura chinesa não é produto das religiões monoteístas com ambições universalistas, como as culturas ocidentais e islâmicas), a China construiu uma teia de relações económico-políticas no Médio Oriente.
Com a sua hábil diplomacia tem conseguido criar boas relações com árabes, persas turcos e judeus, sunitas e xiitas, tudo ao mesmo tempo, o que é notável. A necessidade — neste caso de abastecimento energético — aguçou também o engenho. Mais de 40% das importações de petróleo da China têm origem em Estados do Médio Oriente, com um peso particular nesse abastecimento da Arábia Saudita.
4. O programa de amplos investimentos chineses da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative) mostra inequivocamente como a estratégia da China no Médio Oriente é baseada numa maximização de interesses específicos. Envolve a construção de uma grande rede de infraestruturas que facilite o comércio chinês, mas também garanta um crucial abastecimento energético.
Se, para atingir esses objectivos, têm de lidar com uma monarquia ou com uma república, com uma democracia ou com uma autocracia, seja ela secular teocrática, ou com governos de esquerda ou de direita, sejam eles progressistas ou conservadores, isso é fundamentalmente irrelevante. Quanto a considerações morais e ideológicas, isso fica para os ocidentais darem lições de ‘bom comportamento’ ao mundo — e exporem a sua hipocrisia. Esse realismo amoral, não ideológico, facilita a penetração chinesa no mundo exterior.
Aspecto importante, ocorre em paralelo com a perda de importância relativa da região para os EUA enquanto fonte de abastecimento energético. Importa lembrar que ao longo dos últimos anos os norte-americanos se tornaram, cada vez mais, autónomos em matéria energia devido ao petróleo de xisto (shale oil) e e ao fracturamento hidráulico (fracking). As consequências são grandes e, simultaneamente, económicas e geopolíticas. Um eventual agudizar da conflitualidade no Médio Oriente — afectando o regular abastecimento de petróleo devido a danos nas infra-estruturas peotrolíferas como ocorreram, por exemplo, na refinaria da Aramco em 14/09/2019 na Arábia Saudita — provocará fortes prejuízos nas economias desenvolvidas da Ásia, em particular na China.
5. Irá a China intervir futuramente nos conflitos do Médio Oriente? Esta é uma questão que inevitavelmente se coloca quando pensamos na crescente influência chinesa na região. As potências regionais que disputam entre si a supremacia — Irão, Arábia Saudita e Turquia — não são suficientemente fortes para imporem as suas ambições hegemónicas político-religiosas e menos ainda para pacificarem a região. Necessitam do apoio de grandes potências militares com interesses globais (EUA) ou semi-globais (Rússia).
Mas a China tem, cada vez mais, interesses globais, pelo que aos olhos dos Estados que rivalizam e conflituam no Médio Oriente é um potencial aliado de grande relevância. Neste contexto, podem os exercícios navais de finais de 2019, feitos em conjunto pela Rússia, China e Irão, no Índico e no Golfo de Omã, ser interpretados como um primeiro passo nesse sentido? Talvez, mas parece mais ser uma exibição de poder, agora também no campo militar, do que outra coisa. Contínua a não ser líquido que a China se queira envolver militarmente nos conflitos do Médio Oriente.
Na realidade, a China fez um similar exercício naval, um mês antes, com a Arábia Saudita. Ao tomar partido por um dos lados em conflito — o mais plausível seria o do Irão — a China teria muito a perder. A teia de interesses que laboriosamente construiu, onde se relaciona com todos, seria impossível de manter.
No cálculo pragmático e amoral chinês, o petróleo da Arábia Saudita e o acordo comercial com os EUA valem, pelo menos nesta altura, mais do que o Irão. Além disso, nas questões políticas que verdadeiramente tocam o interesse nacional chinês, a estratégia tem funcionado muito bem: o mundo árabe-islâmico ou defendeu a China, ou ficou silencioso na repressão chinesa da sua população muçulmana uigure.