Ficámos encantados com o genoma da cobra-capelo

Espera-se que das pistas trazidas por um estudo publicado na revista Nature Genetics surja um novo antiveneno para as mordeduras da cobra-capelo daqui a dois ou três anos.

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Serpente da espécie Naja naja H. Krisp

Todos os anos, há mais de cinco milhões de pessoas que sofrem mordeduras de serpentes. Contudo, o antiveneno – sobretudo em África e na Índia – é caro, pouco eficaz e fabricado com base num processo descrito há mais de 100 anos. Para tentar desenvolver novos tratamentos, uma equipa internacional de cientistas sequenciou o genoma da serpente venenosa da espécie Naja naja – conhecida como cobra-capelo –, olhando em particular para os genes que produzem o seu veneno nas glândulas. Assim, foi possível identificar 19 genes que codificam toxinas do veneno. Divulgada na última edição da revista científica Nature Genetics, esta informação servirá para desenvolver um antiveneno universal para tratar mordeduras das serpentes.

Muitas vezes associada aos encantadores de serpentes, a cobra-capelo é facilmente identificável pela sua “capa” à volta da cabeça e pelas marcas na parte de trás dessa capa. Normalmente, tem até 1,5 metros de comprimento. E integra o grupo das “quatro grandes” espécies de serpentes responsáveis por mordeduras na Índia, juntamente com a Daboia russelii, a Echis carinatus e a Bungarus caeruleus.

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A cobra-capelo é uma das "quatro grandes" espécies de serpentes responsáveis por mordeduras na Índia Rahul Alvares/Somasekar Seshagiri

Se no mundo mais de cinco milhões de pessoas são afectadas por mordeduras de serpentes todos os anos, cerca de 2,8 milhões são da Índia e 20 mil de África. Por ano, provocam ainda cerca de 400 mil amputações e 125 mil mortes no mundo. A Organização Mundial da Saúde considera mesmo a mordedura de serpentes uma doença tropical negligenciada (NTD, na sigla em inglês), isto é, faz parte das doenças que atingem populações pobres em África, na Ásia e na América Latina e que dificilmente têm acesso a tratamentos e formas de prevenção.

Quanto ao antiveneno, além de ser caro e pouco acessível nalguns locais, os autores do artigo destacam que a forma como é desenvolvimento é praticamente a mesma há mais de 100 anos. “O desenvolvimento do antiveneno para a mordedura de serpentes está ultrapassado. O método que se usa actualmente foi descrito em 1895 e não acompanhou os avanços da genómica”, diz ao PÚBLICO Somasekar Seshagiri, presidente da Fundação de Investigação SciGenom (na Índia), antigo cientista da empresa norte-americana Genentech e coordenador do trabalho.

Através do método actual, extrai-se o veneno da serpente e injecta-se num cavalo. Depois, espera-se que o cavalo produza anticorpos contra o veneno. Se isso acontecer, isolam-se os anticorpos do cavalo, purificam-se e usam-se para tratar as mordeduras. “Nunca foi criado um catálogo de forma sistemática e detalhada das toxinas relevantes do veneno para ser usado no desenvolvimento de um outro antiveneno”, assinala Somasekar Seshagiri. “É como estar a enfrentar uma guerra com um regimento de cavalaria quando o resto do mundo já o faz com aviões de caça com GPS de precisão.”

Para encontrar uma nova forma de atacar as mordeduras de serpentes, a equipa descodificou pela primeira vez e de forma completa o genoma da cobra-capelo através de tecidos de 14 serpentes. Também mapeou as glândulas do veneno (onde este é produzido). Identificaram-se então no veneno – que é composto por uma mistura complexa de proteínas cujo fabrico é comandado por genes – 19 genes que codificam toxinas. Viu-se ainda que estes genes de toxinas só estão expressos nas glândulas do veneno. “Este mapeamento da glândula do veneno é um primeiro passo no desenvolvimento de um antiveneno para se tratarem as mordeduras da cobra-capelo de forma segura e eficaz”, considera Somasekar Seshagiri.

A ausência de patas

As informações recolhidas através deste trabalho poderão servir para modernizar o desenvolvimento do antiveneno contra as mordeduras de serpentes e para desenvolver o próprio fármaco que tentará “parar a dor, reduzir a pressão sanguínea ou a coagulação sanguínea”. Somasekar Seshagiri estima que o antiveneno seja produzido entre os próximos dois a três anos e que siga para ensaios clínicos pouco tempo depois.

Como este é um genoma de elevada qualidade, pode ajudar-nos ainda a perceber melhor a biologia e evolução das serpentes. “Por exemplo, no artigo científico, referimos a presença de uma mutação já reportada e que explica a ausência de patas na cobra-capelo. Também mostramos que esta serpente tem uma mutação que lhe dá imunidade contra o seu próprio veneno”, informa o cientista.

Em futuros trabalhos, a equipa irá sequenciar o genoma das outras três grandes serpentes venenosas da Índia, a Daboia russelii, a Echis carinatus e a Bungarus caeruleus. “Obter os genomas e os genes das glândulas dos venenos das outras três das ‘quatro grandes’ serpentes mortais da Índia e ainda de África é um passo lógico”, diz num comunicado sobre o trabalho Manjunatha Kini, cientista da Universidade Nacional de Singapura e também autor do artigo. “Isto irá dar-nos uma plataforma completa para desenvolvermos um antiveneno seguro e universal para as vítimas das mordeduras de serpentes na Índia, em África e noutros países vizinhos.”

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