O vandalismo de Leça não é política: é apenas crime
A vandalização de uma obra de arte, mesmo as que nos irritam ou deixam indiferentes, é sempre um atentado à criação e à liberdade. Não há forma de a justificar e ainda menos de a defender
A vandalização de uma escultura de Pedro Cabrita Reis em Leça da Palmeira não mereceria mais do uma breve nota de rodapé no noticiário policial do dia se não tivesse destapado a cortina onde se escondem os argumentos da demagogia e do populismo. A pichagem do conjunto escultório com as palavras “vergonha” ou “300 mil euros” desviaram o crime banal do vandalismo para a discussão política onde se procura transformar a arte num custo supérfluo que só existe à custa de políticos corruptos, negócios insondáveis e uma total insensibilidade em relação aos ditos problemas “reais” do país. Em vez de se tornar num exemplo deplorável de insensibilidade, intolerância e desrespeito pelo património público, o vandalismo de A Linha do Mar quase se tornou num monumento que celebra a vitória de um povo oprimido sobre os seus algozes.
Faz parte da boa política discutir e defender prioridades e é normal que haja quem não inclua a arte entre essas prioridades. Mas é igualmente legítimo que uma autarquia, ou um ministério, decidam valorizar o seu património adquirindo obras de arte a criadores consagrados como Pedro Cabrita Reis. Nenhum projecto político democrático, mais à esquerda ou à direita, deve à partida excluir o investimento na cultura ou na arte. Nenhuma sociedade consegue prosperar e enriquecer pondo de lado o investimento no seu património artístico e cultural onde fermentam as ideias e a criatividade. Se a aposta na arte fosse uma “vergonha”, teríamos sido privados da arte que temos, de Grão Vasco a Almada, do mestre Afonso Domingues a Siza Vieira.
Mais grave ainda é o esforço de contextualizar o vandalismo depreciando o valor da obra de Cabrita Reis – como o fez esta quinta-feira no PÚBLICO João Miguel Tavares. Para esses críticos, “arte pública tão ostensivamente minimalista” não cabe nas categorias estéticas do comum dos mortais, logo “não faz sentido”. Teríamos assim firmada a ideia segundo a qual uma autarquia pode comprar caras de meninos com lágrimas que, essas sim, suscitam deleite estético, mas nunca uma obra de Cabrita Reis; Matosinhos teria de despedir a sua soberba Orquestra de Jazz e dedicar-se ao vira do Minho.
Faz sentido que uma autarquia empenhada na modernidade e no desenvolvimento aposte em arte e na cultura. Goste-se ou não dos artistas escolhidos. A vandalização de uma obra de arte, mesmo as que nos irritam ou deixam indiferentes, é sempre um atentado à criação e à liberdade. Não há forma de a justificar e ainda menos de a defender. Entre a arte e a boçalidade que a detesta e quer destruir, não pode haver margem para ambiguidades.