A “tempestade perfeita para incêndios” na Austrália
Numa das regiões mais propensas a incêndios do mundo e que enfrenta uma terrível época de fogos de Verão que já queimaram cerca de cinco milhões de hectares, o vento sopra a favor de uma desgraça ainda maior no Sul da Austrália.
A receita para um incêndio extraordinário envolve vários ingredientes, entre os quais a disponibilidade de combustível, a secura desse combustível, condições climáticas que ajudem a propagar o fogo e, claro, uma fonte de ignição. Austrália, já se sabe, tem todos estes ingredientes em doses generosas e isso já fez com que os seus Verões fossem conhecidos pelas piores razões. Este ano, a catástrofe soma já a destruição de cerca de cinco milhões de hectares (mais de metade do território de Portugal e mais do que os 3,1 milhões de hectares de toda a floresta portuguesa) e as estimativas apontam ainda para a morte de 500 milhões de animais, entre os quais, 30% da população de coalas.
As mudanças climáticas não são capazes de, por si só, provocar um fogo, mas podem ser seguramente uma boa ajuda para transformar uma época de perigo numa tragédia. Os Verões com temperaturas muito elevadas estão longe de ser um evento extraordinário na Austrália. E as épocas de incêndio nesta altura não são seguramente uma novidade. Mas, então, afinal o que explica que desta vez a situação pareça excepcionalmente grave? Muitos cientistas acreditam que a resposta poderá estar no terrível aliado do fogo que são as alterações climáticas. A ligação entre os eventos extremos actuais e as mudanças climáticas antropogénicas é já uma questão cientificamente indiscutível.
O feitiço virou-se contra o feiticeiro num país que é um dos principais emissores de gases com efeito de estufa e que recusa adoptar metas ambiciosas para combater as alterações climáticas. O clima da Austrália aqueceu mais de um grau Celsius no século passado e essa nova situação causou um aumento na frequência e intensidade das ondas de calor.
Também no capítulo da chuva que geralmente ocorre na estação do Inverno e atenua os efeitos de um Verão quente, a Austrália tem más notícias apresentando registos de um declínio. “No Sudoeste do país, as chuvas caíram cerca de 20% desde os anos 1970 e, no Sudeste 11% das chuvas foram perdidas desde os anos 90”, constata Nerilie Abram, investigadora no Centro de Excelência para os Extremos Climáticos do Consórcio de Investigação da Austrália (ARC na sigla em inglês), num artigo de opinião publicado na revista Scientific American.
A cientista defende que o Verão actual australiano apresentou “a tempestade perfeita para incêndios” e mostra claramente os efeitos das alterações climáticas. Em síntese, a região sofre as consequências de um “aquecimento climático de longo prazo, combinado com anos de seca, colidindo com um conjunto de padrões climáticos que produzem um clima severo de incêndio”. O declínio da precipitação e aumento da temperatura que colocou o Sudeste do país em seca desde 2017 matou grandes áreas de vegetação permitindo que o fogo chegasse onde nunca chegou antes. Mas há outros fenómenos menos directos que também fazem parte desta tempestade que é tudo menos perfeita.
Nerilie Abram é uma das cientistas que falam na provável influência do Dipolo do Oceano Índico (IOD, na sigla em inglês), um fenómeno que também tem sido apontado por outros especialistas como possível explicação para a grave situação em que a Austrália se encontra. E não só. De forma simples, o IOD é responsável pela variação da precipitação da Austrália e da Indonésia, bem como pela intensidade das monções na Índia, outras regiões que nestes dias foram afectadas por fenómenos extremos.
O IOD verifica-se quando há uma oscilação das temperaturas da superfície do mar entre fases chamadas positivas e negativas. “As piores temporadas de incêndios da Austrália geralmente seguem eventos positivos de IOD, muito mais do que a influência dos eventos de El Niño no Pacífico. Novamente, as alterações climáticas fazem parte desta história, porque o aquecimento antropogénico está a fazer com que os eventos positivos de IOD se tornem mais fortes e mais frequentes”, nota Nerilie Abram.
A investigadora que também é professora na escola de investigação de Ciência da Terra da Universidade Nacional da Austrália acrescenta ainda que “ao mesmo tempo, este ano, um raro aquecimento estratosférico repentino se desenvolveu sobre a Antárctica no final do Inverno” que favoreceu a época de incêndios porque um complexo jogo de forças faz com que ventos do oeste muito quentes e secos sejam atraídos pelo continente.
“O Verão revoltado que vemos agora na Austrália era previsível”, diz ainda Nerilie Abram, que também critica o Governo australiano pela falta de ambição nas metas de redução de emissões de gases com efeito de estufa. De facto, a cientista não era a única que temia o pior. O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) já tinha avisado que as mudanças climáticas que o homem está a provocar no planeta iam aumentar a intensidade e a frequência dos incêndios na Austrália. O aviso está em vários relatórios da última década e volta a aparecer no documento sobre os solos e uso da terra que foi publicado em Agosto de 2019.
Sem querer piorar ainda mais uma situação que já é um desastre convém, no entanto, lembrar que é nos meses de Janeiro e Fevereiro que a época de incêndios atinge o seu pico na Austrália. Em 2009, uma série de incêndios em Victoria matou 173 pessoas e marcou uma data conhecida como o Sábado Negro. Ninguém quer mais datas negras para lembrar.