Isabel dos Santos nega transferência para a Rússia através de alegado testa-de-ferro
Tribunal deu como provado que a filha do ex-Presidente de Angola “tem tentado transferir avultadas quantias” para a Rússia a partir de Portugal. Empresária vê no arresto um caso “politicamente motivado”.
A empresária Isabel dos Santos, apontada como a mulher mais rica de África, nega ter usado Leopoldino Fragoso Nascimento como intermediário de uma transferência de dez milhões de euros para a Rússia através de uma conta titulada por este general angolano no BCP em Portugal.
Depois de o Tribunal Provincial de Luanda determinar o arresto das suas contas bancárias e das suas participações sociais em empresas, a filha do ex-Presidente angolano José Eduardo dos Santos inaugurou o ano de 2020 com uma série de publicações no Twitter em resposta às acusações de que é alvo por parte do Ministério Público de Angola, dizendo-se vítima de um julgamento assente em “falsidades” – na véspera falava de um caso “politicamente motivado”.
O general “Dino”, como é conhecido o ex-chefe de Comunicações da Presidência da República de Angola, é apontado pelo Ministério Público como um testa-de-ferro da empresária numa alegada tentativa da empresária em deslocar negócios para a Rússia — esse é um dos pontos que fundamenta o pedido de arresto feito contra os três visados no processo n.º 3301/2019-C: Isabel dos Santos, o seu marido, Sindika Dokolo, e o empresário português Mário Leite da Silva, parceiro de negócio.
A empresária rejeita que assim seja e, no Twitter, referiu-se a si na terceira pessoa do singular para o dizer: “É falsa e forjada a informação [de] que Isabel dos Santos ordenou uma transferência de uma conta do General Leopoldino do Nascimento junto [do] Banco Millenium para uma conta na Rússia, e intervenção da polícia judiciária portuguesa, não tendo Isabel dos Santos nenhuma ligação a este assunto”.
O tribunal deu como provado que a empresária “tem tentado transferir avultadas quantias em euros para a Rússia a partir de Portugal por intermédio” de Leopoldino Fragoso do Nascimento e concretiza mesmo que “a Unidade de Informação Financeira – UIF junto da Polícia Judiciária de Portugal interceptou e impediu que se finalizasse uma operação de transferência da quantia 10.000.000,00 de euros a partir de uma conta titulada por Leopoldino Fragoso Nascimento, domiciliada no Banco Millenium-BCP em Portugal, para um banco em Moscovo em que a titular da conta é a sociedade Woromin Finance Limited”. À luz da sentença, a que o PÚBLICO teve acesso, quem travou a operação foi a unidade portuguesa — integrada na PJ, mas com autonomia operacional — a quem cabe analisar as comunicações financeiras suspeitas no âmbito da prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.
Património fora de Angola
O Ministério Público faz referência ao papel de José Eduardo dos Santos na entrega do negócio dos diamantes à filha e marido, acusando Isabel dos Santos, Sindika Dokolo e Mário Leite da Silva de terem ocultado “património obtido às custas do Estado”. Ao todo, o tribunal calcula que, dos vários negócios em que os três intervieram relacionados com empresas públicas, os créditos em relação ao Estado rondam os mil milhões de dólares norte-americanos (estão contabilizados em 1.136.996.825,56 dólares).
Um dos casos tem que ver com a criação, com a Sonangol, da empresa Esperaza Holding, sociedade que tem uma posição de 45% na Amorim Energia (accionista de 33,34% da Galp). Embora a Sonangol tenha 60% do capital da Esperaza, e os restantes 40% estejam nas mãos da empresa Exem Energy (da qual são beneficiários efectivos Isabel dos Santos, Sindika Dokolo e Mário Leite da Silva), a Sonangol, para concretizar o negócio, entrou com 100% do capital (193,4 milhões de euros), tendo emprestado 75 milhões de euros à Exem Energy. A Exem Africa Limited fez uma transferência para a Sonangol para saldar o investimento, mas como o valor foi pago em kwanzas, o montante foi devolvido pela petrolífera porque a dívida tinha sido contraída em euros e o contrato previa essa cláusula, ficando o pagamento em falta até agora.
Os serviços secretos angolanos descobriram que a filha do ex-Presidente “tem tentado vender” a sua participação de 25% que detém através da Vidatel na Unitel, empresa de telecomunicações onde também são accionistas o general Leopoldino Nascimento (através da Geni), a Sonangol (através da Mercury) e a brasileira Oi (através da PT Ventures). Provado ficou também que a empresária tem “encetado contactos para investir no Japão, e que boa parte dos seus investimentos e património não se encontram em Angola”.
Além do arresto das contas pessoais nos bancos BFA, BIC, BAI e Banco Económico, a decisão do tribunal garante também a apreensão judicial das participações sociais no próprio BIC (onde Isabel dos Santos controla 42,5% do capital), no banco BFA, na Unitel, na ZAP Media, no Continente Angola ou na Condis, sociedade de distribuição com a qual a Sonae (grupo que detém o PÚBLICO) teve uma joint-venture, entretanto terminada, na área do retalho alimentar em Angola.
Julgamento “sumário”
Nas várias declarações feitas esta quarta-feira no Twitter, a empresária diz ter sido confrontada com a sentença sem poder defender-se. E diz ser vítima de motivações políticas na era de João Lourenço como novo Presidente da República, sucessor do seu pai após 39 anos no poder. “Motivados pela vontade de ajustar contas com a minha família, este caso pretende mascarar o falhanço económico das políticas iniciadas após a saída do Presidente dos Santos. Em dois anos, as políticas do actual Governo colocaram na pobreza milhares de famílias da classe média”, entende.
Isabel dos Santos alega que a sentença contém “várias falsidades”, que, diz, teriam sido rebatidas se tivesse “tido oportunidade de responder”. Por isso descreve o processo como um “julgamento sumário”, alegando que “a ausência dos procedimentos de defesa permitiu ao Ministério Público apresentar documentos e testemunhos falsos” ao tribunal.
Para a filha do ex-Presidente angolano, “tudo isto não aponta para um futuro brilhante para o Estado de direito” no país. “Ignorar os direitos de defesa que são a base fundamental de qualquer sistema de justiça credível ilustra o ressurgimento da arbitrariedade em Angola”, considera.