Eutanásia: o direito a morrer
O que o debate da eutanásia procura é saber se temos ou não direito a escolher como será o último momento da vida, e não o procedimento em si.
Portugal está à beira de aprovar uma legislação sobre a morte medicamente assistida, vulgarmente conhecida por eutanásia (que ganhou mau nome apesar de ser uma bela palavra: boa morte). Seja qual for a solução que o Parlamento aprove, podemos dizer já que se trata de legislação obsoleta, com soluções de duvidosa capacidade de respeitar o que verdadeiramente se trata quando se pensa em eutanásia (desde logo pelo escopo da legislação proposta).
Quem queira conhecer o que o Parlamento português fez nesta matéria poderá encontrar alguns dossiers muito pouco interessantes ou mesmo relevantes, bem como um sem fim de debates fundados em pensamento médico e jurídico. Mesmo o conceito de autonomia, normalmente considerado fundamental na discussão do tema, decorre, nessas discussões, ou da constituição ou do pensamento médico.
Somos levados a pensar que a última palavra sobre a nossa vida é do Estado: constituição, lei e medicina versus o doente (porquê doente?). Isto acontece porque o debate sobre a eutanásia está descentrado. Iremos nalgumas linhas rebater algumas premissas comuns.
A eutanásia não é um problema jurídico
Estamos demasiados habituados ao conformismo jurídico-constitucional como se devêssemos conformar as práticas sempre ao direito (subordinação do nós-social à constituição). Mas, na verdade, é ao contrário que as coisas devem acontecer: nós conformamos o direito. É certo que a política e os actores jurídicos raramente querem que tenhamos essa noção. Por isso é que, mesmo os projectos hoje em discussão, se baseiam ainda numa eutanásia como direito negativo.
Não é importante, num primeiro momento de análise de qualquer assunto, o que a constituição ou o que a lei diz. Há outros passos primeiro, e o primeiro de todos é do pensamento livre e crítico. As soluções jurídicas depois desses passos são tão variadas que qualquer a priori jurídico é indicador de uma escolha. Por que não discutir primeiro a escolha?
A eutanásia não é um problema médico
Há uma enorme confusão entre procedimento e opção. O que o debate da eutanásia procura é saber se temos ou não direito a escolher como será o último momento da vida, e não o procedimento em si (acto médico ou não, outra questão irrelevante para a discussão). Na verdade, poderá haver um acompanhamento médico, mas a escolha não é uma escolha terapêutica.
Devemos sublinhar aqui, que tantas vezes ouvimos falar de ética médica como se esta fosse diferente (melhor, subentende-se) da nossa ética comum, que todos usamos. Antes pelo contrário, a ética médica funda-se nas normas e escolhas éticas que todos partilhamos de uma forma ou de outra. Se o primeiro princípio fundamental da ética for que todo o humano deve ser tratado humanamente, então, e a julgar por alguns casos de médicos/profissionais de saúde que todos conhecemos, talvez seja melhor não avaliarmos esta questão pela bitola deles.
Também convém não esquecer que não há dois valores em contraponto: o valor de uma “norma médica” (vulgarmente dito que o médico não deve matar) com o valor da opção individual da eutanásia. Não é a opção do médico que está em causa.
Por outro lado, existem muitas maneiras concretas de se estabelecer a prática do direito à eutanásia. Mas essa escolha é feita no quadro de uma possibilidade efectiva. É aí que vários saberes, não apenas o médico, são chamados a dar a sua contribuição.
A eutanásia não é homicídio nem suicídio
Infelizmente já ouvimos muitas vezes que a eutanásia é igual ao homicídio, ou mesmo ao suicídio, criticando-se quem a defende como um assassino em potência. Nos casos discutidos em Portugal, é a doença terminal que é a verdadeira causa de morte. É por o doente não encontrar forças, vontade ou capacidade de lidar mais com a dor e o sofrimento reais que ele escolhe o que se pudesse não escolheria.
A eutanásia não é contra os cuidados paliativos
Muitas vezes é usado o exemplo dos cuidados paliativos como solução para lutar contra a escolha da eutanásia, e devemos dizer que sim. Que a capacidade do país em fornecer cuidados paliativos a todos os que deles precisem deve ser cada vez maior. Mas isso não é o que está em causa, mais uma vez, nem a eutanásia deverá desviar o Estado de procurar cada vez melhores soluções de cuidados paliativos. A opção de morrer está para lá da questão de saber se o estado deve ou não cuidar de mim humanamente! Não se trata de cuidar versus tirar a vida. Trata-se, tão somente, de cuidar de diferentes maneiras, e, nos casos terminais, acontecem ao mesmo tempo.
Todos aqueles que defendemos a eutanásia, defendemos um maior reforço dos cuidados paliativos e que essa deve ser uma prioridade do estado! Num país envelhecido e com a prevalência de doenças terminais e demências como o nosso isso é fundamental.
Quem tem o poder de escolher a minha morte?
Entre os que se opõem à eutanásia encontramos referida, algo contraditoriamente, a hipótese de estarmos a dar ao Estado, ao profissional de saúde ou a qualquer outro o poder sobre a nossa morte. Sejamos claros. Sempre que isso aconteça, agora ou com uma lei da eutanásia, estamos perante um crime. Ninguém, nem mesmo o Estado tem o direito de escolher a minha morte.
A morte e o morrer
Para quem quer pensar a eutanásia a morte é irrelevante. O que está em causa é o morrer. Para que fique claro, a morte é o momento a seguir a mim. É um facto. É no morrer (seja por eutanásia ou outra forma) que sou eu e eu com toda a minha vontade e autonomia. E este morrer é um processo, de que o final, o último sopro, é apenas um evento. É neste processo de morrer (e todos estamos em processo de morrer) que a eutanásia pode ser considerada como opção.
O Estado e a disponibilização de recursos
Uma das críticas mais comuns é a de que com a possibilidade da eutanásia se atribui ao estado não só a competência como os gastos com a eutanásia. Não só é uma questão mal posta, isto é, existem várias formas de não ser o Estado a efectuar o procedimento (e mais uma vez esta é uma questão secundária), como os recursos financeiros para suportar o doente são incomensuráveis face aos custos associados à eutanásia. Esta questão só se põe num segundo momento. E devemos sublinhar que o Estado é, em primeiro lugar, defensor da diferença (que cada um possa escolher o caminho que quer seguir na sua vida) e defensor da igualdade (que cada um tenha os meios para escolher livremente).
Também na questão dos recursos, há a sugestão de que o Estado, precisamente porque a eutanásia é menos custosa que os cuidados paliativos, preferiria uma opção à outra. Ora, isto é não só uma falácia como uma demonstração de má-fé. Na eutanásia não é o Estado que opta. E um Estado que legisle sobre eutanásia encontrará soluções jurídicas e técnicas que não só não permitem os abusos como os previnem. Neste contexto, todo e qualquer acto não nascido na opção livre e informada dos indivíduos é um crime.
O direito a morrer
“Quero morrer sendo plenamente um ser humano”. Hans Küng
O teólogo alemão, defensor do direito a optar pela eutanásia, numa frase simples, indica o que está em questão: o humano. Saber em que medida a autonomia do indivíduo deve ser salvaguardada em qualquer caso (e bem sabemos que a autonomia não é algo que se exerça sozinho), porque acreditamos que a realização do humano se faz de escolhas, e poderá nem ser a mais importante, a maneira de morrer.
Para responder à pergunta pela opção de morrer, é preciso, portanto, sabermos responder à pergunta: o que é o humano?