Imaginar o inimaginável
PS e PSD: dois partidos, o mesmo programa social-democrata, mas dois enraizamentos genéticos e duas culturas inconciliáveis.
Se, a mero título de entretenimento intelectual, puxarmos pela imaginação, rapidamente concluiremos que o sistema partidário português está muito mal arrumado.
Temos, com efeito, nada menos do que dois partidos social-democratas, o PSD e o PS. Ambos perfilham a propriedade privada, o capitalismo no âmbito de um mercado regulado, e o chamado “Estado Social”: redistribuição da riqueza por via fiscal, escola pública, Serviço Nacional de Saúde, subsídio de desemprego, rendimento mínimo garantido, etc.. Sem a pretensão de esgotar a lista das benesses justamente dispensadas pelo Estado aos cidadãos mais carenciados, isto é o núcleo da social-democracia, partilhado pelos dois principais partidos portugueses. Nos respectivos programas e nos respectivos discursos podemos encontrar nuances, diferenças de ênfase ou de generosidade estatal, mas, em essência, não se vislumbram diferenças significativas.
Não me vou ocupar do PCP porque, este sim, constitui uma fortaleza granítica auto-referencial, anacrónica e imune à passagem dos tempos, das modas e até das necessidades. O PCP remete para uma questão geracional (e de crescimento económico: se o país crescesse a 4 ou 5%, o PCP já se teria evaporado). Mais tarde ou mais cedo, entregará a alma ao Criador. Paz à sua alma.
Já o Bloco de Esquerda é uma realidade muito mais precária e esvoaçante, dividido por tendências que mutuamente se detestam mas que, até há pouco, pelo menos publicamente, se têm conservado unidas em virtude da força agregadora do poder. Os jobs exercem uma irresistível atracção sobre boys & girls. Segundo o que o público consegue enxergar, a principal clivagem dá-se actualmente entre extremistas revolucionários, que recusam qualquer transacção com o abominável capitalismo, e trotskistas pragmáticos que, pela boca de Catarina Martins num momento de infeliz atrapalhação, até já proclamaram que o Bloco também é, no fundo ou em essência, social-democrata. Não: o Bloco não é social-democrata. Aspira ao estabelecimento do socialismo por via legal e gradual, mediante uma apropriação pelo Estado de tudo o que de interessante seja privado, uma aspiração disparatada porque o capitalismo só se poderia destruir por meio da violência revolucionária.
Temos finalmente o CDS, que, de tantas coisas ter sido, não se sabe o que é. É do centro, é democrático, é social, conforme a sigla indica. Reclama-se, ou reclamava-se, da democracia cristã, mas a verdade é que, nas várias fases da sua atribulada existência, a visão católica do mundo nunca foi explícita ou implicitamente reconhecível: meia dúzia de insistências na importância da família tradicional ou no impropriamente chamado “direito à vida” não chegam para lhe conferir uma coloração efectiva e verdadeiramente conservadora e cristã. O CDS é, como sempre foi, uma direita envergonhada, que por isso reclama o Centro e navega na indefinição: miséria da ideologia – ou covardia ideológica.
Se tentarmos, a título de exercício imaginativo, arrumar tudo isto, o lógico seria que os autênticos sociais-democratas se unissem num só partido. A isso obsta o facto, decisivo, de que o Partido Socialista contém no seu seio, desde a fundação, uma esquerda radical, marxista, anti-capitalista que começou por encarnar em Manuel Serra, em 1974, e que recentemente foi fugazmente representada pelo já defunto “galambismo”. O esquerdismo do PS tem agora como referência mais credível o “nunismo” de Pedro Nuno Santos, que entretanto moderou a sua linguagem histriónica em virtude do pinote para o Governo. Político hábil, dizem que ministro competente e arguto negociador, mas um pobre carácter: criticado por ter um Porsche, vendeu-o e, pior, anunciou aos quatro ventos que reconhecera o pecado e renunciara à luxuosa viatura – notória falta de coluna vertebral. Mas com coluna ou sem ela, Nuno Santos, apesar da gravitas a que o cargo governativo obriga, constitui uma referência para a esquerda radical do PS, que muito melhor e mais coerentemente estaria encaixada no Bloco de Esquerda. Casamento impossível, porque os padrinhos bloquistas prefeririam infiltrar e conquistar o PS por dentro, vindo depois à tona como garbosos vencedores.
Também a minoritária ala liberal do PSD, vagamente conservadora, constitui uma maçada para quem deseje traçar uma estratégia social-democrata consistente. Parece, portanto, mais lógico que o liberalismo conservador anichado nas periferias do PSD enfileirasse no CDS. Claro que não ignoro as tremendas dificuldades que uma tal migração levantaria. As rivalidades pessoais, os choques entre ambições concorrentes bastariam, só por si, para inviabilizar esse “fusionismo” à direita. Teríamos demasiados galos numa única e apertada capoeira.
Uma hipotética fusão do PS social-democrata com o PSD social-democrata – que teoricamente seria lógica – levantaria na prática ainda muito maiores problemas e intransponíveis obstáculos. É que não se trataria apenas de arranjar vários poleiros para demasiados galos. Tratar-se-ia de “fusionar” origens genéticas, culturas políticas, tradições e sociabilidades radicalmente diversas e, em última análise, incompatíveis.
São estes factores que constituem o “muro de Berlim” entre dois partidos com programas essencialmente semelhantes. A génese do PS e a génese do PSD não podiam ser mais diferentes. O PSD foi fundado por Sá Carneiro a partir de um capital político acumulado desde a sua saliência como dirigente da ala liberal do Marcelismo. Sá Carneiro possuía a legitimidade necessária para convocar para a possibilidade democrática aberta pelo 25 de Abril todos os ex-marcelistas da “União Nacional” que vegetavam, órfãos e desgarrados, por esse país fora. A semente do então chamado PPD – Partido Popular Democrático – germinou na província, com particular vigor regional. O PPD enraizou-se sobretudo a Norte do Tejo, no Portugal católico e conservador, no chamado Portugal profundo, observante da religião, apegado à pequena propriedade rural. Mas mal penetrou no Alentejo, nesses tempos catequisado pelo comunismo de Cunhal. Sá Carneiro era do Norte, e nunca foi maçon; nunca foi “sulista e elitista”.
Já Mário Soares, um lisboeta coleccionador de livros e de arte, fundou o PS na Alemanha, rodeado de intelectuais oposicionistas e maioritariamente “sulistas”, e mais tarde definiu-se como “laico, republicano e socialista”; era maçon. Ora esta veia maçónica impregna até hoje o mainstream do Partido Socialista, permitindo cumplicidades ocultas que por definição escapam ao escrutínio público e muitas vezes são mais determinantes do que as orientações oficiais do partido. A relativa clandestinidade da maçonaria alimenta um espírito conspirativo herdado dos seus antepassados jacobinos, dos quais igualmente herdou um anti-clericalismo assanhado que foi a mais destacada bandeira da nossa I República e que, após o 25 de Abril, ressurgiu como a marca de água legada pelos antigos progenitores. As lojas são o local por excelência da sociabilidade maçónica. O PSD vive nos cafés de Ovar ou de Castro Marim.
Dois partidos, o mesmo programa social-democrata, mas dois enraizamentos genéticos e duas culturas inconciliáveis; dois ADN’s incompatíveis.