Pode a arquitectura mudar o rumo de Vila Nova de Foz Côa?
Com três primeiros lugares no Prémio Arquitectura do Douro e outras distinções a nível nacional e internacional, Vila Nova de Foz Côa pode ter o nome inscrito numa possível rota da arquitectura portuguesa. Ainda assim, a luta contra o despovoamento é difícil de ganhar.
A história de Vila Nova de Foz Côa começou a ser inscrita na pedra durante o Paleolítico Superior, dizem os arqueólogos que desde 1994 se dedicam a estudar o que à época foi considerado “um dos mais fabulosos achados arqueológicos do mundo”. As gravuras rupestres rapidamente se tornaram um marco do concelho que, a partir de 1996, passou a constar na lista de património mundial da Unesco. Cinco anos depois, em 2001, a classificação repetiu-se, desta feita com o organismo a reconhecer o carácter único do Alto Douro Vinhateiro — território do qual o concelho faz parte na íntegra. Foram, precisamente, construções ligadas a estas duas áreas que valeram a Vila Nova de Foz Côa dois primeiros lugares no Prémio Arquitectura do Douro: em 2006, com a Adega da Quinta da Touriga-Chã, e em 2014, com o Museu do Côa. Mais recentemente, em 2016, foi a vez do Centro de Alto Rendimento do Pocinho, também em Foz Côa, conquistar a distinção.
Com a prateleira repleta de prémios (nacionais e internacionais), que se juntam a uma variedade imensa de recursos endógenos, por onde passa o futuro de Vila Nova de Foz Côa? Que papel pode protagonizar a arquitectura de autor num concelho que luta diariamente contra os efeitos negativos da interioridade? Como e quem pode tirar partido da oferta cultural e natural que o território tem para oferecer? O P3 percorreu as estradas acidentadas que contornam as margens do Douro à procura de respostas e passou a palavra às gerações mais jovens ali encontraram motivos para se fixarem.
Voltar para ajudar a “reconectar”
Quando Ana Lúcia Vilaça regressava a Vila Nova de Foz Côa para passar férias de Verão era como se estivesse numa “bolha de ar puro fora do tempo”, onde a “liberdade” e o “sossego” imperavam. Filha de emigrantes, Ana nasceu e cresceu em França, na localidade de Saint-Denis, sob a influência de duas culturas, o que “nem sempre foi fácil”. Estudou Gestão de Recursos Humanos, mas foi o tempo que passou como consultora de reconversão profissional que viria a mudar-lhe a vida. “A actividade revelou-me uma série de questões essenciais: a forma como somos formatados pela educação que recebemos e pela sociedade; como nos afastamos do que nos faz brilhar o olhar; a incapacidade de entendermos as nossas emoções ou, ainda, o poder que o medo tem para comandar as nossas acções e escolhas.”
Depois de anos a ajudar os outros a encontrar a sua essência e a experienciar transformações pessoais, Ana Lúcia decidiu que estava na hora de criar um espaço que servisse este mesmo propósito, o de ajudar “pessoas a reconectar“. Com as recordações daqueles Verões ainda frescas, Vila Nova de Foz Côa foi uma escolha óbvia. As maravilhas naturais da região aliaram-se ao desejo de recuperar a casa que outrora pertenceu aos avós. Um regresso repleto de simbolismos que se junta à vontade de “aliviar a concentração nos grandes centros urbanos, como Lisboa e Porto”.
O projecto que está a criar, um ecoturismo, é como uma síntese dos ideais de Ana e do marido, que servem de base à educação da pequena Maia, a filha de quatro anos. “Os valores de respeito pelo ser humano e pela natureza são viscerais para nós. Esse modo de vida traz-nos muita felicidade.” Recusa, por isso, qualquer tipo de aproveitamento das tendências ecológicas e ambientalistas em voga: “É preciso ter muita convicção porque não é fácil nadar contra a corrente”, admite.
Neste projecto, que terá na arquitectura da casa o principal pressuposto, Ana conta com a ajuda do marido Sébastien, engenheiro, da irmã deste, arquitecta “especializada em projecções ecológicas e sustentáveis”, e do cunhado, também engenheiro e “uma referência em construções e renovações ecológicas”. Com a equipa constituída, a procura por materiais ecológicos e locais tem dominado a presente fase de construção e renovação do espaço, o que, por vezes, pode ser um entrave. “Tenho sentido muitas dificuldades, principalmente em encontrar artesãos e mão-de-obra qualificada para ajudar nas obras e materiais de construção ecológicos.”
Com data de conclusão prevista para o Outono de 2020, o ecoturismo familiar terá, numa primeira fase, três quartos com capacidade para três a nove pessoas. A nível comunitário, Ana espera que a iniciativa contribua para “desenvolver o turismo no concelho” e, consequentemente, ser uma “solução para o despovoamento”. Um exemplo que, na opinião da própria, pode ser seguindo “por outros jovens”, já que “potencial não falta e há ainda muito por fazer”.
“Quanto mais natural melhor, não é?”
Quem entra no restaurante Aldeia Douro o mais provável é que dê de caras, quase de forma imediata, com André Pesqueira e Cláudia Mateus. Embora dominada pela azáfama da confecção dos pratos, a dupla – do outro lado do vidro que separa a sala da cozinha – nunca descura os pressupostos que levaram André a montar o negócio na pacata rua no centro histórico de Vila Nova de Foz Côa há cinco anos. “Queríamos um espaço onde se pudesse comer bem e onde as pessoas se sentissem igualmente bem.” O caminho até aqui ficou marcado por ajustes constantes, mas o proprietário confessa que o negócio está, agora, “mesmo como o idealizou desde o início”. E o que é que isso significa?
Cláudia, o “braço direito” de André na cozinha, explica. “Um jogo entre o tradicional, que está presente no nome do restaurante, e a inovação. Tentamos reinventar os pratos com criatividade e com respeito pela cozinha, pelos sabores tradicionais.” Nessa procura pelo equilíbrio perfeito, os produtos que trazem da própria horta dão uma ajuda — afinal “quanto mais natural melhor, não é?”, conclui André.
Questionado pelos motivos que o levaram a escolher Foz Côa como casa para o projecto, André responde de forma simples e eficaz: “Eu adoro isto!” Nascido e criado no concelho, saiu para completar a formação académica, mas aos 26 anos já estava de volta. Cláudia mostra-se igualmente rendida aos encantos da região, mesmo quando recorda o tempo que passou no Porto, na universidade. “Pensando em estabilizar e transitar para outra fase da vida, em que quero aplicar o que aprendi e descansar, ter uma vida mais tranquila, sem dúvida que aqui é o melhor sítio.”
Apesar do gosto que nutrem pela arte de cozinhar (e de comer também, confessam), nenhum dos dois tem formação em cozinha – André é licenciado em Marketing e Cláudia em Biologia com mestrado em Artes Plásticas. Não escondem, por isso, a vontade de tentar a sorte noutras áreas. No caso de André, o futuro pode passa por retomar a ideia original do Aldeia Douro. “Queríamos mostrar às pessoas tudo o que a terra tinha de bom. Começámos por fazer degustações gastronómicas e tínhamos os nossos parceiros, que dinamizavam visitas às gravuras, passeios pedestres… nós assegurávamos as refeições. Com o tempo e face ao trabalho que o restaurante dá, a outra parte do projecto foi deixada de lado. E agora nunca se sabe se poderá voltar ou não.”
Para Cláudia, encontrar ligações com a vida “pré-restaurante” torna-se fácil: na horta e no contacto com animais revive os tempos que dedicou à Biologia. No que diz respeito às Artes Plásticas, as pinturas que decoram o restaurante são da sua autoria e existe ainda o atelier Raiz, de costura e arte, que, por agora, está em stand-by.
Frederico e Paulo uniram esforços
A ligação emocional também foi crucial para que Frederico Lobão e Paulo Grandão (com 39 e 41 anos, respectivamente) se fixassem em Vila Nova de Foz Côa. Após herdarem terras de familiares, perceberam que a “venda de uvas e azeitona isoladamente não justificava manter as parcelas”, pelo que acabaram por unir esforços e criar o Gerações de Xisto. Um projecto que assenta na produção da linha de azeite Chousas Nostras e dos Vinhos Gerações do Xisto e Vales Dona Amélia. O ano de 2010 marcou o início da comercialização do azeite; o primeiro vinho chegou ao mercado em 2012.
Numa área em que a antiguidade é um posto, Rui Carrelo, enólogo da empresa, admite que o caminho rumo à afirmação está repleto de desafios: “para atingirmos determinados mercados temos que fazer o dobro ou o triplo de outras marcas”. A aposta recai, por isso, na diferenciação e no tratamento personalizado que é dado a quem os visita. As apresentações dos néctares não são feitas em adegas — uma técnica “mais do que banalizada” —, mas no terreno. “Levamos as pessoas aos sítios onde é feita a apanha da uva e a colheita da azeitona. Mostramos as dificuldades que enfrentamos para termos uma garrafa no mercado e o porquê do preço.” A experiência, que contempla ainda a caracterização da região, termina “com uma prova e um piquenique de produtos endógenos numa parcela virada para o rio”.
Nas margens do Douro, a aposta no enoturismo é uma tendência recorrente e Rui não duvida que a afirmação da marca Gerações do Xisto também passará por aqui. “É assim que conseguimos atingir determinados mercados”. Datas ou prazos para a construção desta eventual uma unidade turística ainda não existem, mas o enólogo garante que o projecto avançará “o mais breve possível, mediante a disponibilidade e capacidade” para o fazerem “de forma sustentada”. Para já, a luta que travam é sobretudo contra a falta de mão-de-obra, uma realidade transversal “a todas as regiões remotas do país”, onde existe “maior dificuldade ao nível da fixação de pessoas”.
Vinho, gravuras rupestres e arquitectura
Neste objectivo partilhado de atrair mais pessoas para Vila Nova de Foz Côa, a arquitectura “está a fazer o seu trabalho”. Quem o diz é o presidente da câmara, Gustavo de Sousa Duarte. Certo de que a arquitectura “também vende e traz retorno”, o autarca sublinha a aposta que tem sido feita na área, nomeadamente com os dois concursos de ideias lançados para a concepção do Foz Côa Story House (uma unidade hoteleira que, quando terminada, será operada por privados) e do mercado municipal.
Sem esconder a ambição de ver Vila Nova de Foz Côa novamente no topo da lista de premiados (com o hotel Casas do Rio, por exemplo), Gustavo Duarte garante que ali não se “constroem edifícios só para ganhar prémios”. Mostra-se, ainda assim, satisfeito com o crescente interesse por parte de arquitectos estrangeiros — o Centro de Alto Rendimento do Pocinho já recebeu a visita de “60 arquitectos dinamarqueses” e de alunos e professores da Faculdade de Arquitectura de Sevilha — e com a visibilidade que o concelho ganhou através da exposição do Prémio Arquitectura do Douro, patente em várias zonas do país.
Direccionando o enfoque para as centenas de turistas que diariamente percorrem o leito do rio Douro, Câmara Municipal e Museu do Côa ultimam detalhes para a construção de um cais e um passadiço, que permitirão o acesso directo ao centro museológico para quem chega à região via barco. As construções, espera-se, permitirão, no caso do museu, dar continuidade ao aumento de visitantes que se tem vindo a registar desde 2016 — na ordem das 60 mil pessoas por ano.
Apesar de todas as distinções, ainda não é possível identificar em Vila Nova de Foz Côa actividades ou negócios (criadores de emprego) com origem na vertente arquitectónica do concelho. Isso e quantificar quantos visitantes se deslocam com o propósito de desfrutar da arquitectura de excelência que ali existe. Talvez por isso Gustavo Duarte opte por apresentar o concelho como um “pacote completo” onde a oferta cultural dificilmente se iguala à das demais regiões. “Somos o único concelho que tem dois patrimónios mundiais pela Unesco, a qualidade dos produtos endógenos é excelente, por isso a arquitectura joga e conjuga-se com tudo isto, com este património.”
Apoiado por Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte.