Formas de censura político-cultural no Brasil contemporâneo
O campo cultural tem sofrido duros golpes desde 2013, “o 11 de setembro da direita brasileira”, para usar os termos de Vladimir Safatle, grande filósofo, escritor e músico brasileiro.
Tivemos em 25 de novembro, no Centro Cultural Olga Cadaval, como parte da programação da 13.ª edição do Lisbon & Sintra Film Festival, a oportunidade de assistirmos ao filme Marighella, com apresentação do diretor Wagner Moura. Fazia muito tempo que não saía de um cinema tão desnorteada. Na longuíssima fila que se fez para a casa de banho, as mulheres choravam, outras calavam-se.
Há tantas coisas a acontecerem no Brasil que não estamos a conseguir dar conta de fazer sentido e examinar os porquês; mas como casos de censura cultural, de obras e pessoas, dois episódios podemos narrar enquanto os mais marcantes deste ano. Primeiro, o caso do filme de Mariguella, que está a ser passado nas telas de festivais internacionais, mas não foi visto ainda em terras brasileiras. O filme trata daqueles que ‘foram de aço nos anos de chumbo’, tendo como figura central um dos principais atores de oposição ao regime ditatorial brasileiro.
Há muitos questionamentos em torno dos porquês do filme biográfico do comunista considerado herói ou terrorista não ter conseguido recursos públicos para sua distribuição. A justificativa seria de que como recebeu investimentos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), administrado pela Ancine (Agência Nacional do Cinema), os produtores da obra deveriam comunicar o lançamento com 90 dias de antecedência, para liberação dos recursos destinados à distribuição. A produtora então anunciou o cancelamento da estreia prevista para dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, e, portanto, data de resistência e mais propícia impossível para o lançamento. A 02 Filmes, produtora, explicou que não foi possível a comunicação com a antecedência necessária porque não havia sido ainda assinado o contrato com o FSA. Tropeços burocráticos que tecnicamente não podem ser chamados de censura, mas isto não é futebol – apesar dos comportamentos políticos brasileiros desde as últimas eleições estejam a mirar aqueles de fidelização a clubes futebolisticos.
Olhando o contexto mais amplo, vemos que há um efeito cascata derivado dos golpes nos flancos da Ancine, além de interferência na descentralização interna de decisões da Agência. Corte de 43% dos recursos, ameaças de extinção caso não consiga implementar “filtros culturais”, ou seja, de conteúdo. Ainda, o Governo Bolsonaro não tem assinado, nomeado ou legislado nada com relação ao audiovisual brasileiro, mas tem sim afastado servidores e diretores da Agência. Há uma criatividade nesta censura, que se dá mais pelo não fazer do que pelo fazer, Ad referendum. É uma censura subtil que ao invés de dizer “não passará”, usa a estrutura estatal para negar condições de passar. Há muitas evidências sobre a interferência política nas decisões da agência, somadas com comemorações da prole de Bolsonaro nas redes sociais pelo cancelamento do lançamento do filme. Fato é que o atual governo brasileiro tem prestado especial atenção a Marighella, e ao vermos a dureza e excelência do filme, entendemos o porquê.
Trata-se de um contexto perverso e delicado, em que a dependência dos recursos governamentais por parte das produtoras pode levar com que estas procurem o não desgaste com a Ancine. O efeito cascata pode assim também motivar níveis de autocensura do setor sobre si próprio: o audiovisual, com impactos nas escolhas das obras a serem produzidas. Já ao rodar o globo levando o filme ao púlpito internacional, os produtores e o diretor Wagner Moura seguem estratégia que muitos brasileiros, entre políticos, escritores, auto exilados e grupos indígenas tem adotado: denunciar as sansões e ataques vivenciados, ilustrando o que tem se passado no Brasil e procurando apoio da opinião pública, movimentos e agências internacionais. Segundo o jornalista Mário Magalhães, autor da biografia que deu origem ao filme, em seu Twitter: “É este o filme que não consegue estrear no Brasil. É esta a história que não querem que seja conhecida. É este o personagem que pretendem condenar ao esquecimento. O esquecimento é amigo da barbárie.”
O segundo caso emblemático que podemos citar, e que envolve Portugal, é o do Prêmio Camões, cujo vencedor do presente ano foi Chico Buarque, uma das personalidades artísticas mais reconhecidas no Brasil, que pelo acaso ainda levou o número de 13.° brasileiro a ser premiado. Perguntado sobre Bolsonaro disse que seria segredo se assinaria o certificado do cantor e escritor, acrescentando ainda que “até 31 de Dezembro de 2026, eu assino.” Mesmo a assinatura sendo formalidade e não colocando em questão a premiação, a não assinatura seria sem precedentes e envolve desgastes internacionais desnecessários. Chico escreveu em sua conta oficial no Instagram que “a não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo Prémio Camões”. Rapidamente cria-se um abaixo-assinado intitulado “Eu assino o Prêmio Camões para Chico Buarque de Holanda”, com 35 mil assinaturas, não somadas ainda a de muitos escritores e artistas que declararam também assinarem o Prémio. Já é a segunda vez este ano que ações de caráter censitário do governo do presidente eleito dirigem-se a Chico Buarque. O primeiro caso foi a retirada do programa de exibição de um festival de cinema do Uruguai do filme Chico: Artista Brasileiro, de Miguel Faria Jr, episódio que contou com interferência do governo e embaixada brasileira.
Há muitos elementos simbólicos em torno destes dois casos, que nos remetem ao passado, e a um presente e futuro com muito passado. Em comum, ambos os casos possuem personagens simbólicos da luta contra a ditadura militar implementada no Brasil de 1964 a 1985 através de um golpe. São ambos ativistas, revolucionários nas suas formas de agir, artistas. É um contexto que nos exige reexaminar e alargar a definição de censura. O campo cultural tem sofrido duros golpes desde 2013, “o 11 de setembro da direita brasileira”, para usar os termos de Vladimir Safatle, grande filósofo, escritor e músico brasileiro.
Fato é que a cena cultural brasileira já vinha a ser golpeada deste o governo de Michael Temer, quando o Ministério da Cultura foi extinto e depois recriado após forte pressão da comunidade artística e população. Agora, artistas são acusados de aproveitadores dos contribuintes e sustentados pela Lei Rouanet (Lei nº 8.313, 1991, de incentivo e repasses de verbas através de projetos aprovados pelo Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura – Salic). Cultura é escrachada como prejuízo aos cofres públicos e gasto dispensável. Eu diria, por outro lado, que a Cultura brasileira, em suas muitas e ricas manifestações, é dos bens mais exportados do Brasil, e cujo investimento estratégico permitiria maiores retornos ao país e aos cofres públicos. Não seria mais rentável em múltiplos sentidos investirmos na cultura popular ao invés de carne amazônica para exportação?
Ando cansada de ter que explicar aos amigos e pessoas que por aí encontro como é que isto acontece a um país que estava vivendo um contexto com inovações democrático-participativas sem paralelos no mundo, expansão de universidades, saída do mapa mundial da fome, em resumo, nunca se viveu melhor no Brasil como nestes anos 2000, e os Institutos de pesquisa (com I maiúsculo) estavam a dizer isto de todas as maneiras possíveis. Posso responder novamente com as palavras de Vladimir Safatle, de que “quando você não acerta contas com a história, a história te assombra.”
Todos os dias acordamos nos perguntando o que fazer. A América Latina está a sangrar e seus verdes anos já estão a tomar rubra coloração. Mas como disse a liderança indígena Ailton Krenak “Nós estamos resistindo há 500 anos”, e resistindo seguiremos, nós brasileiros, apesar de você.