Quem quer jogar no português, uma língua a criar excêntricos? Anda hoje à roda
A bonomia da aproximação actual entre o português e o espanhol faz-se de um entendimento de oportunidade com um pé na cultura e outros nos negócios.
Anda por aí uma onda de euforia em torno do português que, num passe de mágica, ofusca todos os problemas que existem à sua volta. O mais recente feito, celebrado pelos nossos governantes, foi a promulgação, pela UNESCO (na sua 40.ª Conferência), do dia 5 de Maio como Dia Mundial da Língua Portuguesa. “Passo importante” para tornar o português língua de trabalho da ONU, veio logo dizer António Costa. Ele estava lá, em Paris, ele sabe. Além do mais, levava números no bolso, que não andavam longe do que ficou expresso na declaração da UNESCO: “O português é a linguagem de nove estados-membros da UNESCO, (…) língua oficial em três organizações continentais e da Conferência Geral da UNESCO e é falada por mais de 265 milhões de pessoas, sendo uma das mais faladas no hemisfério norte”.
Ora isto sucedeu dez anos depois de a CPLP ter escolhido o 5 de Maio como Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (o que entre nós é sempre motivo para mais um sarau), coincidindo agora ambas as datas num todo harmonioso e exuberante. Foi a parte que nos coube na lotaria, até porque, como a própria UNESCO confessou, a ONU anda a encorajar “a celebração de um dia nacional para cada uma das línguas oficiais da organização”. Portanto, força que a data é nossa!
Mas quantas línguas existem no mundo? Segundo a própria UNESCO, umas seis a sete mil. Só que, ainda segundo a UNESCO, apenas 4% dessas línguas (entre 240 a 280) são faladas por cerca de 97% da população mundial, ficando os restantes milhares (muitas delas línguas indígenas ou de populações muito reduzidas) para entendimento e uso de uns escassos 3% da Humanidade. O que levou, já, a uma espécie de SOS para salvar as línguas ameaçadas de desaparecimento.
Mas não é isto que nos traz aqui, antes a euforia nacional. Sim, temos um dia Mundial, que até coincide com um Dia Internacional. O que fazemos com ele? Discursamos. E fazemos contas: já somos 260 milhões de falantes, havemos de ser 500 milhões no final do século XXI. E lá veio o primeiro-ministro, feliz, repetir, como tantos outros, que o português “é a língua mais falada no hemisfério Sul e cuja dinâmica demográfica vai ter um certo crescimento no final do século”. Este “certo crescimento” é a contar com África, não exactamente com a língua. Números.
E é de números que estas coisas vão vivendo. Nos dias 21 e 22 de Novembro, na Gulbenkian, reuniu-se a Conferência Internacional das Línguas Portuguesa e Espanhola, sob a sigla “Ibero-América: uma comunidade, duas línguas pluricêntricas” e aí também os números imperaram. Já não os 260 milhões (a querer ser 500) da CPLP, mas os 800 milhões (a querer ser mil milhões) dos ibero-falantes, seja lá o que isso for, que, espalhados pelo mundo, farão da união destas línguas uma coisa poderosa. Não houve palestrante que não tirasse uns números da algibeira, para sustentar esta coisa avassaladora: hoje somos milhões, amanhã seremos mais (o espanhol, ou castelhano, anda particularmente feliz com a sua expansão vocal nos Estados Unidos).
Que isto dizer que, a prazo, mais cidadãos de outras nacionalidades falarão, voluntariamente e com prazer, o espanhol e o português (línguas “de cultura”, “de ciência”, “de negócios”, etc.)? É melhor refrear os ânimos. No caso português, era aconselhável começar pela casa-mãe e, pelo menos, traduzir para português o que aqui se vai escrevendo em inglês para sermos “modernos”.
Não era mau princípio. Na Gulbenkian, a escritora brasileira Nélida Piñon (presença recorrente neste tipo de encontros, até porque tem antepassados na Galiza) disse que as duas línguas ali irmanadas numa sala deixaram “um legado benigno e mortífero, ao mesmo tempo.” Sim, todos sabemos do sangue derramado e também das lágrimas, da escravidão e da conquista, dos ódios e das batalhas que fizeram a história dos séculos antecedentes. Mas a bonomia da aproximação actual faz-se de um entendimento de oportunidade com um pé na cultura e outros nos negócios.
E se na América do Sul esse entendimento linguístico é corrente entre o Brasil e os países seus vizinhos, na Europa ele tem sido mais distante e lento, devido não só às especificidades da fala portuguesa (mais cerrada e seca) mas também à renitência espanhola a aprender outras línguas. Os projectos-piloto bilingues (português-espanhol) em escolas de fronteira são um bom passo para ultrapassar este afastamento, que é circunstancial, como muito bem explica um livro recente que todos deviam ler: Assim Nasceu Uma Língua, de Fernando Venâncio (Guerra & Paz, 2019).
Onde entra África, nisto tudo? Mais uma vez na plateia, a assistir, já que a CPLP é observadora da OEI (Organização de Estados Ibero-Americanos). O espanhol castelhano (porque Espanha abarca outras línguas, como o galego, o basco e o catalão) e o português multiplicaram-se em variantes, mas estas tardam a ser reconhecidas como parte legítima e comum de cada língua.
Quase anedoticamente, António Costa disse em Paris que o português “hoje é uma língua que pertence a muito mais pessoas no Mundo do que só a nós portugueses e isso traduz-se em formas diversas de escrever”. No entanto, temos um Acordo Ortográfico a fingir (e afirmar) o contrário. Talvez seja boa altura de levar a sério aquelas últimas palavras e livrarmo-nos dele, de vez.