Jorge Jesus contra as maldições: a sua e a do Flamengo

Técnico português joga neste sábado, em Lima, a final da Taça Libertadores frente ao River Plate. JJ perdeu as suas duas finais europeias e o “Mengão” só por uma vez triunfou na mais importante competição de clubes da América do Sul.

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Jesus num treino do Flamengo em Lima LUSA/Antonio Lacerda
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LUSA/Antonio Lacerda

Quando chegou ao futebol brasileiro, disseram que Jorge Jesus não tinha “grife”. Não era um treinador de luxo porque só tinha títulos na “porcaria do campeonato português”, como disse um comentador. Faltavam-lhe os títulos continentais, na perspectiva deste comentador (que, entretanto, se arrependeu dos seus comentários) para ser um treinador de gama alta. Por duas vezes esteve perto de ganhar a Liga Europa pelo Benfica, mas falhou ambas em anos consecutivos, frente ao Chelsea, em Amesterdão, e ao Sevilha, em Turim. Neste sábado, em Lima, JJ tem mais uma oportunidade de elevar a sua “grife” e de acabar com a sua maldição num continente diferente. O seu Flamengo vai defrontar os argentinos do River Plate na final da Taça Libertadores da América (20h, SPTV1), o desafiante brasileiro e clube com mais adeptos do mundo contra o detentor do título.

Se Jorge Jesus já esperava há cinco anos por uma nova oportunidade, o Flamengo já vai em quase 40 anos a tentar repetir a única vez que conquistou a maior competição de clubes da América do Sul, em 1981, uma final frente aos chilenos do Cobreloa com direito a um terceiro jogo para desempatar – 2-0, dois golos de Zico – a que se seguiu o triunfo na Taça Intercontinental frente ao Liverpool (3-0). Nos 38 anos que se seguiram, o “rubro negro” só conseguiu duas vezes chegar às meias-finais, sendo que em ambas (1982 e 1984) era um modelo diferente – uma espécie de segunda fase de grupos em que se apurava para a final o primeiro de cada um. Mas foram fracassos atrás de fracassos, com conquistas pelo meio em competições secundárias que já nem existem (Copa de Oro, que só durou três anos, em 1996; Mercosur, que também só durou três anos, em 1999).

Como é que o Flamengo, o clube com a maior “torcida” do Brasil –  como diz o escritor Ruy Castro, em “maioria tanto entre os desdentados quanto entre os que nunca tiveram uma cárie” – ficou tanto tempo à espera de voltar à final da Libertadores? Palavra a Zico, talvez o maior ídolo da história do Flamengo. “Sempre teve times bons, mas cometia um erro aqui, outro ali. A Libertadores não te dá o luxo de errar. Falhou, complica”, diz o “Galinho de Quintino”, o maior goleador da história do Flamengo (509 golos em 732 jogos), numa conversa com o “Blog do PVC”. E por que razão só agora regressa? Passa pela estrutura actual do clube, observa Zico noutra entrevista, e por Jesus: “Já conheço bem o trabalho dele e é lógico que, aliado ao plantel que recebeu, soube colocar em prática. Jesus é o responsável pela equipa estar a jogar desta forma.”

Com Jesus no comando (e, diga-se, com Deus como adjunto, João de Deus, antigo técnico do Sporting B), o Flamengo recuperou a sua vocação vencedora, de “ir para cima”, e, de caminho, devolveu ao futebol brasileiro a sua identidade ofensiva. “O Brasil foi descoberto por um português, o futebol brasileiro foi redescoberto por outro”, dizia há poucos dias Maurício Borges, comentador da Fox Sports. “O Jesus, estando a ganhar por três ou quatro, tem um comportamento até um pouco sádico. Porque continua a mandar para a frente”, observa ainda o comentador.

E não é só pela vocação ofensiva que Jesus vai mudando mentalidades. O português navega pelo carregado calendário das principais equipas brasileiras sem fazer uma rotação total do “onze”, regra adoptada por muitos. “Descansar? Isso não existe”, sintetiza Jesus. Os números dão-lhe razão: em pouco mais de quatro meses, disputou 32 jogos, ganhou 22, empatou oito e perdeu apenas dois. Esta época pode valer-lhe vários recordes no futebol brasileiro: maior número de pontos (em 34 jornadas já igualou os 81 do recordista Corinthians nas 38 rondas em 2015); mais vitórias consecutivas (oito, igualando a marca do Cruzeiro em 2003 e 2013); melhor ataque (tem 73 golos marcados e com quatro jornadas pela frente para igualar ou ultrapassar os 77 do Cruzeiro em 2013).

Agora, o Flamengo vive a sua semana de euforia, com a possibilidade de ser campeão sul-americano e brasileiro no mesmo fim-de-semana, e a nação rubro-negra deslocou-se em massa até à capital do Peru. Mas, há uns meses, esta campanha da Libertadores parecia ser mais uma condenada a ser incluída na maldição. A qualificação na fase de grupos esteve longe de ser tranquila, com o Flamengo a segurar um empate (0-0) em Montevideu frente ao Peñarol e a jogar com menos um na última meia-hora. Pouco menos de um mês depois, Abel Braga saía do Flamengo.

A seguir entrou Jorge Jesus, cuja estreia na prova continental não podia ter corrido pior, uma derrota por 2-0 no Equador frente ao Emelec – era a primeira derrota de Jesus na sua aventura brasileira e logo em dia de aniversário, o seu 65.º. Mas a diferença seria anulada em menos de 20 minutos no segundo jogo e o Maracanã empurrou o Flamengo para a qualificação nos penáltis. Depois, ficaram pelo caminho os dois grandes de Porto Alegre, primeiro o Internacional, depois o Grémio, com uma boa dose de “nota artística” (5-0 na segunda mão) e sabor a vingança frente Renato Gaúcho, treinador vencedor da Libertadores em 2017 e um dos que tinha desprezado a “grife” de JJ.

Gallardo, um ídolo no banco

Pela primeira vez na história da competição, a final da Libertadores será decidida num único jogo e em campo neutro, uma alteração ao tradicional modelo a duas mãos depois do que aconteceu na final de 2018 entre River Plate e Boca Juniors. A primeira mão, na Bombonera, foi adiada um dia pelo dilúvio que aconteceu em Bueno Aires, a segunda mão disputou-se no Santiago Bernabéu, em Madrid, a primeira vez que uma final da Libertadores se disputou fora da Europa. O motivo? O autocarro do “Boca” foi atacado nas imediações do Monumental poucas horas antes da segunda mão. No conjunto dos dois jogos, ganhou o River, naquele que foi o seu quarto título continental.

Tal como nessa final dividida entre a Bombonera e o Bernabéu, Marcelo Gallardo estará no banco dos “Milonarios” em Lima – também uma solução de recurso, sendo que a opção original era Santiago do Chile. Tem sido uma relação longa e feliz a de Gallardo com o River, desde os tempos em que era “El Muñeco”, médio ofensivo elegante e ídolo dos “hinchas” durante 13 temporadas em três períodos distintos. Depois, passou a ser “Napoleão”, um comandante que, em cinco anos, já conquistou dez títulos com a equipa de Buenos Aires – todos em finais, incluindo duas Libertadores, apenas perdendo três.

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Aos 43 anos, Gallardo já é o detentor unânime do estatuto de melhor treinador da história do clube, jovem e moderno que enquadra a fúria argentina com os melhores métodos do futebol europeu, uma preocupação multidisciplinar que vai da adaptabilidade táctica à neurociência. É um verdadeiro comandante, como diz Rodolfo D’Onofrio, presidente que o contratou em 2014: “Napoleão era um militar que convencia as tropas da estratégia de combate que deviam utilizar. É assim Marcelo. Os jogadores vão para o campo convencidos do plano. Depois ganham, ou não. Mas acreditam.”

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