Menina e Moça chegou ao Porto de copo de vinho na mão e olhos nos livros
A livraria-bar nasceu em Lisboa e agora também tem casa no Porto. Baptizada com o nome do romance de Bernardim Ribeiro, vive entre livros, copos e petiscos. E há uma agenda de actividades onde cabe o spoken word, que abriu a programação.
Num espaço forrado a livros em prateleiras habitadas por autores tão diversos como Fernando Pessoa, José Saramago, Italo Calvino ou George Orwell, ouvem-se palavras de histórias que nascem nas ruas e bairros do Porto, ditas por quem acumulou experiência ao chocar nas esquinas mais afiadas dos limites da cidade. Uns minutos antes apenas se ouvia o som de um piano e o burburinho quase silencioso de quem conversava nas mesas de uma sala parecida com a de uma outra casa qualquer, onde o conforto é feito da presença de pessoas que nos são próximas.
Essa “musiquinha” de fundo deu lugar à palavra dura e crua atirada por quem se atreveu a tomar o lugar de narrador numa sala cheia de gente que não se conhecia, mas que de alguma forma pertencia àquele sítio. Esta sala de um prédio do coração do Porto, encostado ao Jardim da Cordoaria, virada para a cadeia onde Camilo Castelo Branco esteve encarcerado, tem nova dona.
Há dois anos e meio comprou casa em Lisboa e, depois de várias visitas à Invicta, morreu de amores pelo Porto. Em Outubro assentou arraiais no número 44 do Campo Mártires da Liberdade em nova morada que divide com a da capital. É a Menina e Moça que abre a porta de casa para que, entre um copo de vinho, uma chávena de café bem quente e uns petiscos, se celebre a palavra em forma de livro ou lançada pela oralidade.
Numa quarta-feira entramos nesta livraria-bar que foi buscar o nome ao romance de Bernardim Ribeiro sem precisar de pedir licença para uma primeira experiência dedicada ao spoken word. Com curadoria de Nuno Rebelo, da Somos Bipolar, conduzida pelo actor/escritor/poeta Ismael Calliano, nesta sessão estão presentes alguns representantes da comunidade hip-hop local – na casa está a Enigmacru.
Com o coração perto da boca deixam sair das entranhas poemas, que ao mesmo tempo são letras de músicas, mas sem ajuda de batida. Só eles e um microfone, um a um, a olhar para quem os vê (e ouve) e para estantes onde também estão alguns dos maiores poetas portugueses, despem-se de medos e com a palavra na ponta da língua dizem o que lhes vai na alma sem ajuda de cábulas. Será assim todas as quartas-feiras, com outras histórias, outros participantes e outros autores.
Esta é apenas parte da programação deste espaço idealizado por Cristina Ovídio, que em Fevereiro de 2017 abriu a primeira Menina e Moça no Cais do Sodré, em Lisboa. Num futuro próximo, a proprietária que trabalhou como editora no Clube do Livro quer ver na agenda da programação mensal jam-sessions, um quizz cultural, leituras encenadas e um clube de leitura. Todas estas actividades podem ser acompanhadas por um menu que inclui tábuas de queijos, tostas e outros petiscos, vinho, vinho do Porto, bagaço com lima ou simplesmente café. Brevemente pensa também vender livros em segunda mão e deseja ter cada vez mais autores portugueses traduzidos para outras línguas.
Aqui não há best-sellers
Os livros que lá se encontram, roubando o espaço aos best-sellers, estão à venda, mas também podem ser folheados. Convida-se também que lá se apareça com um livro na mão para aproveitar a leitura num espaço que no tecto tem pintadas ilustrações da autoria de uma artista da cidade – Mariana Rio. Quem olhar para cima vê representações de Camilo Castelo Branco quando esteve preso na Cadeia da Relação, do gato de Manuel António Pina ou Ana Plácido a chorar a um canto.
Responsável pela remodelação do antigo restaurante ficou o marido de Cristina, Henrique Vaz Pato, que é arquitecto. Pelas paredes das casas de banho passou o traço de António Vaz Pato (filho) e Carlos Santos, que pintaram trabalhos a homenagear Sophia de Mello Breyner Andresen e Agustina Bessa-Luís.
A ideia de abrir um espaço no Porto nasceu ainda antes de a primeira casa inaugurar. Cristina Ovídio conhecia mal a cidade, mas há um clique que se dá a partir dos olhos de outra pessoa.
Há cerca de dez anos, o escritor/jornalista espanhol Juan José Millás, na sua passagem pelo Correntes de Escrita, na Póvoa de Varzim, deu um salto ao Porto com a ex-editora. Ao olhar para as pontes que atravessam o Douro, o autor desvenda na cidade uma atmosfera dramática e trágica que partilha com Cristina.“A partir daí passei a olhar para o Porto com outros olhos. A cidade tem em si romantismo, mas também tragicidade”, diz. Não tem dúvidas: “O Porto é uma cidade literária”.