Pela preservação do antibiótico através do seu uso responsável
Todos somos necessários no combate a esta ameaça à saúde: cidadãos, médicos, farmacêuticos, enfermeiros, veterinários, agricultores, políticos.
De 18 a 22 de Novembro celebra-se a Semana Mundial do Antibiótico, promovida pela Organização Mundial da Saúde. A nível europeu, o dia 18 marcou o Dia Europeu do Antibiótico. A razão de ser destas efemérides prende-se com o reconhecimento de que estamos rapidamente a esgotar um recurso valioso, que transformou de forma profunda a prática da Medicina nas últimas décadas.
O desenvolvimento dos antibióticos, substâncias capazes de inibir o crescimento ou de matar microrganismos causadores de doença, sustentou a prática de múltiplas terapêuticas em campos tão diversos como a Cirurgia, a Oncologia ou a Medicina Intensiva, servindo de pilar fundamental para grande parte da sua actividade. Atente-se nas disciplinas cirúrgicas. Uma grande parte dos procedimentos actualmente disponíveis como opções terapêuticas para múltiplas patologias só são seguros graças à disponibilidade de fármacos eficazes para a prevenção da infecção associada à cirurgia. Por exemplo, sempre que há secção de segmentos do intestino para remoção de um tumor ou colocação de uma válvula cardíaca artificial ou de uma prótese articular da anca ou joelho, a utilização de profilaxia antibiótica cirúrgica é determinante para diminuir o risco de infecção, que comprometeria profundamente a qualidade de vida do doente ou, em casos mais graves, poderia levar à morte.
Múltiplos trabalhos científicos têm mostrado que o consumo global de antibióticos está a aumentar de forma sustentada, com os países em desenvolvimento a contribuírem de forma significativa para este incremento. Estudos recentes mostraram que o consumo global aumentou 65% entre 2000 e 2015 e projecções para 2030, assumindo a ausência de alterações na política de utilização, estimam um aumento até 200% sobre o consumo em 2015.
A utilização de antimicrobianos não se limita à medicina humana, estendendo-se a áreas como a Medicina Veterinária, a agro-pecuária ou mesmo a construção civil.
Assim, o antibiótico é um recurso social fundamental e com consumo global crescente.
Resistência aos antibióticos é a capacidade dos microrganismos se modificarem, desenvolvendo mecanismos que os tornam resistentes à acção dos antibióticos. Sabemos hoje que o consumo de antibióticos é um dos determinantes principais do desenvolvimento desta resistência. A associação entre consumo de antibióticos e resistência dos microrganismos está bem documentada em escalas temporais e espaciais, em hospitais, lares/asilos, cuidados continuados, cuidados de saúde primários e comunidades.
Esta faceta do antibiótico é verdadeiramente singular. Não existe nenhuma outra classe de medicamentos onde o uso acarrete o risco de diminuir a eficácia da droga, não só para o doente a ela exposto mas também para outros doentes no presente e no futuro. Temos que aceitar que a utilização de ABs condiciona efeitos laterais de natureza ecológica. Estamos a mudar o comportamento de diversos microorganismos capazes de causar doença em humanos, nomeadamente tornando-os resistentes a múltiplas classes de ABs. Não podemos sequer argumentar que se trata de uma descoberta recente. Alexander Fleming, no seu discurso de aceitação do prémio Nobel em 1945, advertia para o risco do uso inadequado dos antibióticos levar ao desenvolvimento de bactérias mais resistentes e, portanto, mais difíceis de tratar.
A realidade é que o problema se avolumou ao ponto de representar actualmente uma grave ameaça para a saúde pública. Hoje em dia, na Europa, a prevalência de infecções causadas por microrganismos resistentes a antibióticos é igual à soma da prevalência de tuberculose, VIH/sida e gripe e há 30.000 mortes associadas a este tipo de infecções por agentes resistentes. Mais de um terço destes casos é causado por bactérias resistentes a antibióticos “de última linha”. Se nada de muito significativo for feito, a resistência aos antimicrobianos será responsável, em 2050, por mais mortes do que o cancro e a diabetes em conjunto. Estas projecções apontam para aproximadamente 10 milhões de óbitos por ano, ou seja, uma morte a cada três segundos, à escala mundial. Em termos financeiros, a estimativa de perdas para a economia mundial é da ordem dos 100 triliões de dólares.
Tal como a libertação de carbono para o ambiente é inerente a grande parte das actividades da sociedade moderna, também a utilização de ABs tem papel em múltiplas actividades humanas. A sua utilização deve, no entanto, ser limitada a situações e pelo tempo em que é estritamente necessária. À semelhança da “pegada do carbono”, foi proposta a figura da “pegada do antibiótico” (www.antibioticfootprint.net). Em ambos os casos o objectivo de reduzir esta pegada é uma necessidade premente sob pena de piorar significativamente as condições de vida a nível global. A pegada do AB pode ser uma ferramenta útil para a divulgação alargada do problema, usando dados oficiais de forma acessível a todos. Da análise destes dados fica fácil de ver que existem disparidades gritantes no consumo de ABs entre diversos países. Estas são certamente de natureza multifactorial mas há que reconhecer que a falta de informação do público sobre a verdadeira utilidade do AB é um aspecto fundamental. Medidas tão simples como o reconhecimento de que os ABs são inúteis, e até prejudiciais, para situações tão comuns como a vulgar constipação ou a gripe podem ter um impacto relevante desde que comunicadas de forma eficaz.
Todos somos, portanto, necessários no combate a esta ameaça à saúde: cidadãos, médicos, farmacêuticos, enfermeiros, veterinários, agricultores, políticos.
A nível nacional, foi criado, em 2013, na Direcção-Geral da Saúde, o Programa de Prevenção e Controlo de Infecções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA), ao qual foi atribuído estatuto de programa de saúde prioritário e, mais tarde, no mesmo ano, consagrada em lei, por força do despacho 15423/2013, a obrigação de criar nos hospitais, cuidados de saúde primários e cuidados continuados, grupos de apoio à prescrição de antibióticos. Urge reforçar este programa, à escala central e à escala local, nas unidades de saúde. Foram igualmente desenvolvidas, na última década, duas campanhas nacionais de consciencialização do cidadão para este problema, uma delas da responsabilidade do Grupo de Infecção e Sépsis em parceria com a Direcção-Geral da Saúde.
Só através de uma parceria activa entre todos os interessados será possível combater de forma eficaz esta situação. Considerando o papel ubíquo que o antibiótico desempenha na nossa sociedade, esta colaboração terá que ser tão ampla quanto possível, relevando que todos temos um papel a desempenhar. Esse era o espírito da Aliança Portuguesa para a Preservação do Antibiótico, promovida pela Direcção-Geral da Saúde e Grupo de Infecção e Sépsis, que incluía e unia múltiplas entidades interessadas neste problema e essenciais à sua resolução, nomeadamente a Deco. Cremos bem que é tempo de reanimar essa Aliança, de forma a garantir a utilização ética e responsável do antibiótico, como bem escasso e fundamental e, assim, preservar a eficácia do antibiótico para as próximas gerações.