O “herói” que afinal não salvou o bebé é produto do imediatismo da imprensa
Caso do bebé encontrado no lixo em Lisboa é um exemplo de “precipitação” por parte da comunicação social. E até Marcelo Rebelo de Sousa agiu sem dispor de informação exacta sobre o que tinha acontecido.
O bebé que por estes dias foi colocado no ecoponto de Santa Apolónia pela mãe não foi, afinal, resgatado por Manuel Xavier, um sem-abrigo de Lisboa que ficou com os louros de ter salvado a vida do recém-nascido e recebeu a gratidão pública do Presidente da República. Logo que o caso foi conhecido, Marcelo Rebelo de Sousa deslocou-se ao local onde o bebé foi retirado e falou com Manuel Xavier, que se assumiu como o herói da história. Mas, segundo a SIC, quem retirou o bebé do contentor amarelo foram outros dois sem-abrigo: João Paulo e Rui Machado, que surgem nas imagens das televisões e dos vídeos, onde Manuel Xavier também aparece.
A SIC entrevistou os dois sem-abrigo que assumiram o resgate do bebé perante as câmaras de televisão, e como o Presidente da Republica entrou na história foi confrontado com o facto de ter dado crédito a um herói que talvez não o fosse assim tanto. “Se em vez de um foram vários que colaboraram nessa salvação, tanto melhor”, declarou o chefe de Estado à estação de televisão.
O PÚBLICO pegou neste caso e falou com dois professores universitários da área da Ciência da Comunicação e questionou-os sobre a importância que hoje é dada ao imediatismo da informação e os riscos que tal comporta. As primeiras notícias tornadas públicas sobre este caso apontavam que quem salvou o bebé foi um sem-abrigo, de 44 anos, quando não o foi. Por outro lado, a resposta que o Presidente da República dá à SIC quando é confrontado por ter dado crédito à versão de Manuel Xavier mostra que a informação de que dispunha não era exacta.
Professora de Jornalismo e investigadora de Ciências da Comunicação, Felisbela Lopes começa por dizer que o “jornalismo assenta cada vez mais no imediatismo e das fontes de informação que de uma forma apressada fazem julgamentos lineares sobre factos complexos”. “Neste caso, a mediatização imediata confunde-nos porque nos leva logo a concluir que a mãe é a culpada”, diz Felisbela Lopes, alertando para leituras distorcidas quando os actores são pessoas.
“Olhar só por um lado, dá-nos uma leitura muito enviesada. Não se trata de inocentar a mulher que não tem qualquer rede familiar coesa -, mas é preciso procurar compreender este comportamento e analisar a situação em todo a sua complexidade”, sustenta a ex-pró-reitora para a área da Comunicação da Universidade do Minho.
Afirmando que “há uma certa precipitação de todos porque ninguém fica indiferente a um bebé recém-nascido que é colocado num contentor do lixo”, a professora adverte, contudo, que “em casos como este é preciso ter cuidados acrescidos e leituras cautelosas porque a realidade é complexa e a realidade que integra pessoas é de uma complexidade extrema”. Felisbela Lopes não tem dúvidas que “aquilo que não se sabe sobre este caso pode ser imenso. É muito mais profundo o que se desconhece do que aquilo que o jornalismo alcança”.
Directos e os telemóveis
Gustavo Cardoso, professor de Ciência da Comunicação do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, põe também o dedo na ferida e alerta para o desinvestimento do jornalismo na reflexão/investigação, dando primazia ao imediatismo. “A reflexão deixou de ser feita porque a norma que se instalou é: acontece, publica-se hoje”, declara, notando que esta forma de fazer jornalismo acaba por distorcer a realidade.
Segundo Gustavo Cardoso, é o imediatismo que marca hoje o jornalismo. Explica que este imediatismo começou com os directos nos canais de televisão, mas tudo mudou com a chegada da internet. “A internet marca uma mudança do nosso ritmo de vida”, atesta, apontando diferenças.
“Os directos serviam originalmente para interromper as nossas rotinas quotidianas que eram alteradas por momentos verdadeiramente marcantes, exemplo: ataque às torres gémeas”, afirma o professor, frisando que a internet abriu a porta à “instantaneidade”. “A maneira como domesticamos os telemóveis levou-nos para uma partilha, quer por parte de quem produz, quer por parte de quem consome, numa lógica do instantâneo. Nesta lógica, jornalista e o cidadão deixaram de achar que o directo era para situações que paravam as rotinas e passou a ser para tudo”.
Para o professor do ISCTE, o “imediatismo tem um problema quando é feito acriticamente” e está na origem de “erros de escrita”. Ao PÚBLICO, o professor de Ciência da Comunicação do ISCTE critica a falta de diferenciação dos órgãos de comunicação social que – na sua opinião – “são todos parecidos uns com os outros, quer nos estilos, quer nas práticas”.
“É mais fácil copiarem uns pelos outros” do que apostar na diferenciação, diz. Mas é na diferenciação que este académico vislumbra um caminho para o futuro dos órgãos de comunicação social. “Aqueles que são capazes de se diferenciarem são os que têm futuro”, afirma, deixando uma certeza: “O jornalismo para ser importante tem de fazer parte do nosso quotidiano”.
Defensor de uma reflexão sobre o impacto do imediatismo do jornalismo nos dias de hoje, o professor acrescenta que o caminho do jornalismo se faz com “novas formas de negócio minorado o impacto da propaganda, da desinformação e das notícias falsas”.