Santa Casa de Lisboa lança campanha para recrutar famílias de acolhimento e “devolver a infância” a crianças em risco
Em 2017 havia apenas cerca de 150 famílias de acolhimento em todo o país. E só no distrito de Lisboa existiam 1250 crianças à procura de uma.
“Acolher uma criança é devolver-lhe a infância”. Este é o mote da campanha da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, lançada esta sexta-feira em parceria com o Instituto da Segurança Social, que tem como objectivo impulsionar o acolhimento familiar para crianças em risco no país.
Em 2017, ano dos últimos dados disponíveis, existiam cerca de 1250 crianças à procura de uma família de acolhimento só no distrito de Lisboa. No entanto, o número de famílias prontas a acolher essas crianças ainda é escasso.
“A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) já tem vindo a desenvolver um programa de acolhimento familiar no sentido de proporcionar essa resposta às crianças. Portanto já há algumas famílias de acolhimento avaliadas e seleccionadas e outras já em exercício, com crianças acolhidas”, começa por explicar ao PÚBLICO Isabel Pastor, directora da unidade de adopção, apadrinhamento civil e acolhimento familiar da SCML. No entanto, sublinha, este número é “claramente insuficiente” face às necessidades das crianças.
A nível nacional, o acolhimento familiar assume também “expressão insignificante”, tendo-se vindo a assistir mesmo, nos últimos dez anos, a uma diminuição no número de famílias. Uma descida que se acentuou entre 2008 e 2009 devido a dois factores: a supressão das famílias com relação de parentesco com as crianças acolhidas e a “falta de investimento político na sensibilização da comunidade para uma cultura de exercício de cidadania e de co-responsabilização de todos na protecção da infância”, conclui a SCML em comunicado.
Números em queda
Actualmente existem pouco mais de 150 famílias de acolhimento em Portugal, registando-se uma tendência para o recurso ao acolhimento em instituições. Segundo o Relatório CASA - Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens, de 2017, apenas 3% das crianças e jovens que necessitam de colocação se encontram numa situação de acolhimento familiar. Por outro lado, na vizinha Espanha, o acolhimento familiar corresponde a 60%, enquanto em países como a Irlanda e a Noruega esta forma de acolhimento tem uma expressão de 90% e 85%, respectivamente.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa pretende, por isso, “divulgar, sensibilizar e dar a conhecer o acolhimento familiar como uma resposta prevalente e preferencial sempre que é preciso que uma criança seja colocada temporariamente fora do seu agregado familiar de origem”, nota Isabel Pastor, em alternativa à institucionalização. O segundo objectivo, diz, é já “recrutar e apelar às famílias residentes no distrito de Lisboa para que juntem a esta iniciativa e se candidatem a ser famílias de acolhimento”.
O acolhimento familiar garante a integração de uma criança em perigo numa família (que a acolherá temporariamente), de forma a preservar o seu bem-estar e desenvolvimento, oferecendo um cuidado individualizado, segurança, afecto e estabilidade à criança. Embora se destine a qualquer criança em risco, é dada prioridade às crianças até aos seis anos.
Está provada cientificamente a “necessidade de as crianças estabelecerem vínculos o mais precocemente possível, nomeadamente vínculos afectivos”. O que não acontece numa instituição, onde há “uma rotatividade de profissionais que asseguram os cuidados”, salienta Isabel Pastor. Numa família, por outro lado, “a pessoa que embala à noite é a mesma pessoa que acorda de manhã, a quem [a criança] recorre quando está ferida, doente ou triste”.
Estudos recentes demonstram que, na fase inicial da vida, as experiências das crianças podem até afectar a arquitectura do seu cérebro em maturação, podendo ter impacto no seu desenvolvimento físico e cognitivo, estabilidade emocional, identidade cultural e pessoal e na evolução das suas competências.
Quais os passos a dar?
Qualquer pessoa individualmente considerada ou núcleo familiar pode ser uma família de acolhimento, desde que um dos elementos tenha mais de 25 anos e a família não seja candidata à adopção. Cada uma destas famílias seleccionadas pode acolher até duas crianças ou jovens, sendo que em casos excepcionais (como por exemplo quando há irmãos), podem ser acolhidas mais na mesma família. Para isso basta inscrever-se no Programa de Acolhimento Familiar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Ao longo de todo o processo, haverá um acompanhamento por parte de equipas especializadas. “A integração numa família de acolhimento será gradual, assim como a saída e o regresso à sua família de origem ou para outro contexto familiar alternativo” como, por exemplo, a adopção, explica Isabel Pastor.
Depois de esclarecidas todas as dúvidas, as famílias passam por um processo de formação e preparação. “Não estamos perante profissionais. Queremos é que sejam famílias, acima de tudo. Mas é preciso alguma formação prévia para ser capaz de lidar com uma situação específica que é acolher uma criança que não é nosso filho e que tem necessidades especiais em resultado da situação em que se encontra”, acrescenta.
O processo de formação inicial, em que são trabalhados aspectos como “a saída da criança, a aceitação da transitoriedade e como lidar com a sensação de perda”, é um processo intensivo que exige a colaboração das famílias. Depois são avaliados parâmetros como a personalidade, a saúde física e mental, as condições de habitação e segurança e a motivação das famílias de acolhimento.
Caso a família reúna os requisitos legais e substanciais para o exercício do acolhimento familiar, é inscrita numa bolsa de famílias de acolhimento e poderá abrir as portas às crianças em situação de risco. No futuro, caso corresponda ao interesse da criança, existe a possibilidade de manter os laços que foram criados com a família de acolhimento.
Apoio financeiro
Uma família de acolhimento receberá cerca de 523 euros por mês. Se a criança acolhida tiver menos de seis anos, passa a ser aplicada uma majoração de 15%, o mesmo acontecendo nos casos em que a criança (ou as crianças) com mais de seis anos tenha uma deficiência. Se a criança for em simultâneo portadora de deficiência e menor de seis anos, a família que a acolhe receberá 691 euros.
De acordo com a nova legislação aprovada recentemente para o acolhimento familiar, compete ao Instituto da Segurança Social e à SCML seleccionar as famílias, proceder ao pagamento dos apoios, articular com o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde vagas para a criança na nova área de residência ou gerir as vagas de acolhimento — na perspectiva também de alargar o leque de famílias aptas não apenas em número mas também em cobertura geográfica.