O que é feito dos tubarões, raias, cachalotes e enguias do fundo dos oceanos?
Os cinco projectos vencedores das duas edições do Fundo para a Conservação dos Oceanos fizeram progressos. Há enguias marcadas nas águas a sudoeste dos Açores, “Tubarões à vista” nas escolas e outros avanços.
Da mal-amada enguia-europeia ao injustamente mal-afamado tubarão, passando pelos cachalotes que nadam à voltam do arquipélago da Madeira e pelas raias que se espraiam nas águas dos Açores. Estes são os alvos dos projectos vencedores das duas edições, realizadas em 2017 e 2018, do Fundo para a Conservação dos Oceanos, atribuído pelo Oceanário de Lisboa e a Fundação Oceano Azul, que soma um investimento de um total de 250 mil euros. Passados algum tempo desde o arranque das investigações, os cientistas responsáveis pelos projectos adiantam quais foram os passos dados. Todos avançaram com o objectivo comum da conservação da biodiversidade marinha.
Enguias marcadas e (per)seguidas
O projecto apresentado pela Fundação Gaspar Frutuoso é coordenado por José Azevedo, professor da Universidade dos Açores e investigador do Grupo de Biodiversidade dos Açores, e prometia explorar uma das mais intrigantes facetas da enguia-europeia, ou Anguilla anguilla. É que a enguia tem uma das migrações mais complexas do reino animal e o projecto que venceu 100 mil euros na edição de 2018 do Fundo de Conservação para os Oceanos é especialmente dedicado a este seu comportamento.
Na altura da apresentação do projecto, os investigadores anunciaram as metas – entre as quais, colocar 20 transmissores de satélite em 20 animais –, mas já alertavam para os previsíveis obstáculos. Um das principais dificuldades passa por recuperar as marcas colocadas nas enguias e que muitas vezes se perdem inevitavelmente pelo caminho.
Sabemos hoje que este animal nasce no mar, faz uma viagem de milhares de quilómetros que poderá demorar anos até aos rios e lagos europeus, onde cresce até à idade adulta, regressa ao mar alto (ao mesmo local de nascimento) para se reproduzir e morrer. Pelo caminho, transfigura-se em várias formas, cores e feitios. A hipótese que coloca a maternidade e o cemitério das enguias-europeias (e da enguias-americanas, já agora) num mesmo lugar, no Mar dos Sargaços, foi avançada pelo oceanógrafo dinamarquês Johannes Schmidt em 1922.
Assim, o plano dos cientistas era traçar as rotas de viagem da enguia, esperando-se que o princípio da viagem e destino final se confirmasse no Mar dos Sargaços. “O ano passado marcámos três enguias”, anuncia agora José Azevedo ao PÚBLICO adiantando que já receberam sinal de duas delas. “As marcas só comunicam quando se soltam do animal e vêm à superfície. Em ambos os casos, os sinais vieram de sudoeste dos Açores – a caminho do Mar dos Sargaços, mas ainda não lá”, explica o investigador.
Durante o ultimo ano, o trabalho esteve focado no estudo da migração das enguias-de-vidro (meixão). “Durante praticamente todo o ano tivemos armadilhas na foz das principais ribeiras de São Miguel, e capturámos várias centenas de enguias-de-vidro”, conta, acrescentando que aqui se pretende “estudar o ritmo de chegada dos juvenis às ribeiras provindos do Mar dos Sargaços”. Os dados recolhidos ainda estão em tratamento, avisa.
O acompanhamento das enguias vai continuar. “Estamos agora na segunda campanha. De Outubro a Dezembro teremos equipas a trabalhar em São Miguel e nas Flores, procurando capturar as enguias grandes de que necessitamos para levar as marcas.” O investigador refere ainda que as ilhas de Santa Maria e Terceira também serão exploradas. “O objectivo é ter um número maior de animais para marcar no fim do ano. Estamos a tratar do processo de aquisição das marcas, mas a burocracia é gigantesca”, conclui.
Mergulhando com os cachalotes
O projecto “Whale Tales” também foi financiado pelo Fundo para a Conservação dos Oceanos em 2018. Foi apresentado pela Associação Regional para o Desenvolvimento da Investigação, Tecnologia e Inovação e recebeu 50 mil euros para “aumentar o conhecimento científico sobre a utilização de habitat e da condição fisiológica do cachalote nas águas insulares da Macaronésia, com foco no arquipélago da Madeira, onde existe menos informação”.
Na altura, Filipe Pires, que coordena o projecto, referia ao PÚBLICO: “Queremos saber quantos são, quem são, como são, o que fazem, como estão de saúde e através dessa resposta obter também dados sobre todo o ecossistema.” Um ano depois, Ana Dinis, outro dos elementos da equipa, coloca o PÚBLICO a par das (muitas) novidades sobre o projecto. “Através da foto-identificação foi possível identificar e catalogar até ao momento 220 indivíduos para a região da Madeira, baseado nas marcas únicas da barbatana caudal, que nos permitem distinguir os indivíduos entre si”, refere, acrescentando que “em colaboração com investigadores dos arquipélagos vizinhos, Açores e Canárias, foi feita a comparação de indivíduos entre as ilhas e obtivemos 15 correspondências, ou seja, indivíduos que foram vistos em mais de um arquipélago, um dos quais com um intervalo de 14 anos”.
Mas o projecto não quer apenas saber quantas são e por onde andam, mas como estão estas baleias. “Pretendemos estudar a condição nutricional dos indivíduos e o nível de contaminação, como por exemplo a presença de ftalatos (aditivos plásticos) na gordura, entre outros contaminantes”, confirmam os investigadores que salientam que já foram recolhidas 31 amostras e que 14 destas amostras já foram enviadas para estudos comparativos de genética populacional no Atlântico Nordeste e Mar Mediterrâneo.
Fora de água, os cientistas atracaram em várias escolas com a parte de sensibilização deste projecto. “Mergulhando com o cachalote” é o título de uma das acções. Para já, a aposta foi sobretudo na realização de palestras, com acções especificamente adaptadas aos vários ciclos de ensino, mas até ao final do projecto vão ainda ser produzidos cinco vídeos de curta duração que “dão a conhecer a espécie, o projecto e a equipa, para disseminação nas redes sociais, o primeiro dos quais vai estar disponível já em Novembro de 2019”. Aliás, o “Whale Tales” já está nas redes sociais.
Em 2020, os investigadores esperam avançar para a “colocação de marcas de satélite para investigar os movimentos dos animais marcados e, assim, reforçar os resultados da foto-identificação e da genética que indicam tratar-se de uma única população macaronésica”.
As maternidades dos tubarões
Sim, este projecto de investigação é sobre as áreas de parto ou maternidades dos tubarões. O projecto “IslandShark – Oceanic Islands as Essential Habitat for Sharks”, coordenado pelo Centro do IMAR da Universidade dos Açores, foi um dos três vencedores da primeira edição do Fundo para a Conservação dos Oceanos, em 2017. O objectivo era identificar as áreas de parto ou maternidades de tubarões migratórios nas ilhas atlânticas.
O coordenador do projecto, o biólogo Pedro Afonso, coloca-nos a par das novidades sobre o projecto. “Desde o seu início em 2017, o IslandShark cresceu em ambição”, anuncia, explicando que a acção é actualmente uma iniciativa co-financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pelo Fundo Azul (do Ministério do Mar) e pelo Shark Conservation Fund num total de 282 mil euros que “se centra na ecologia e conservação de quatro espécies-chave e vulneráveis de tubarões de ilhas oceânicas, o tubarão-martelo-liso, o cação, a jamanta-oceânica, e o tubarão-azul”. A equipa continua a ser liderada pelo centro IMAR/Okeanos da Universidade dos Açores mas a “família” cresceu e soma muitos outros parceiros. Hoje, especifica Pedro Afonso, o projecto conta com colaborações “da academia e empresas em Portugal (Cibio-Porto, CCMAR Algarve, CEIIA), na Grã-Bretanha (Universidade de Edimburgo), na Alemanha (CATS) e nos Estados Unidos da América (Universidade de Washington, Woods Hole Oceanographic Institution)”.
O trabalho realizado também se multiplicou e vai desde “entrevistas para angariação de conhecimento ecológico tradicional à marcação electrónica de nova geração (incluindo telemetria por satélite e ultra-sons, e o estudo dos movimentos de fina escala com plataformas de vídeo e outros multisensores)”. Foram ainda realizadas contagens através de vídeo subaquático e de drones, bem como análises que recorreram às mais recentes ferramentas da genética. “Estes trabalhos permitiram já identificar algumas áreas de parto e maternidade de tubarão-martelo-liso e de cação em várias ilhas dos Açores, bem como possíveis agregações acasalamento de jamanta-oceânica em montes submarinos offshore, áreas essas que estão a ser integradas nos novos planos da região para a sua rede de áreas marinhas protegidas”, adianta Pedro Afonso. O projecto promete ir longe, mas, para já, “o próximo passo é deslindar as rotas migratórias entre os Açores e outras regiões do Atlântico para estas espécies”.
Outros sinais nas águas
A maior fatia do prémio de 2017 foi de 49 mil euros e caiu nas águas dos tubarões e raias. O projecto liderado pelo MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e que envolve outras instituições de investigação portuguesas, chama-se “FindRayShark”. Como o próprio nome indica, a ideia é encontrar tubarões e raias. Onde? Nas águas dos Açores e nas Berlengas. Como? Usando um método inovador que combina a tradicional vigilância com vídeo subaquático (com isco para atrair os animais) e uma recente técnica de análise ao ADN-ambiental. “Neste ano, o trabalho de campo foi focado no teste das câmaras iscadas, que foram colocadas a várias profundidades em torno das Berlengas, Estelas e Farilhões”, conta ao PÚBLICO a equipa de investigação numa actualização sobre o projecto. Em centenas de horas de vídeo os cientistas já conseguiram alguns avistamentos, sobretudo de espécies residentes que se deslocam junto ao fundo (como a pata-roxa). Mas, admitem, ainda há muitas filmagens para ver com atenção.
“Com o ADN-ambiental temo-nos focado no aperfeiçoamento do método, sendo para isso fundamental a parceria com o Oceanário de Lisboa. No tanque central do oceanário, através de uma simples recolha de água, conseguimos já identificar com sucesso várias espécies de raias, e estamos neste momento a afinar o método para tentar também detectar tubarões, que será essencial na aplicação à zona de estudo”, adianta ainda Miguel Pessanha Pais, um dos elementos da equipa. Especificamente no arquipélago das Berlengas, os cientistas afirmam que têm estado em contacto com pescadores locais e empresas de turismo que comunicam avistamentos de espécies à superfície (como o tubarão-azul ou o tubarão-martelo) e colaboram no projecto.
Pescadores, tubarões e raias
Chama-se projecto “Shark Attract – Conservação de Tubarões e Raias através da Melhoria da Consciencialização na Sociedade e Comunidades de Pescadores”, e ganhou uma verba de 27 mil euros em 2017. O objectivo era analisar os dados existentes e recolher novas informações para identificar pontos críticos ao longo da costa portuguesa sobre a pesca destas espécies. A proposta de Henrique Cabral, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e líder do projecto, previa ainda estimar a captura ilegal e não reportada destas espécies. E, segundo os investigadores, da equipa, o projecto “Shark Attract” “avançou em quase todas as tarefas que tinha delineado”. Assim, entre outras acções que apresentam sobre a actividade dos últimos dois anos, os cientistas referem que a análise dos dados oficiais sobre os desembarques da pesca de todas as espécies de tubarões e raias nos últimos 30 anos em Portugal revela um decréscimo, mais acentuado desde 2010. “Para tentar complementar estes dados com mais informação, e porque seria ainda incorrecto inferir que estes dados poderiam demonstrar um declínio destas populações na nossa costa, estamos a conduzir inquéritos aos pescadores, nos portos de Sesimbra e Peniche (que a nível nacional contribuem em 40 % para o total de desembarques destas espécies)”, acrescentam.
Na frente da sensibilização, destaca-se o trabalho feito pelos cientistas nas escolas, com o programa “Tubarões à vista”. No ano lectivo anterior, a acção envolveu dez turmas do 1º ciclo de escolas da grande Lisboa e este ano o “Tubarões à vista” vai estar nas escolas do 1º ciclo de Peniche. A mensagem é a mesma: “Desmistificar a imagem negativa que as crianças têm sobre os tubarões”, demonstrando o papel fundamental que estas espécies desempenham nos ecossistemas aquáticos e alertar por isso, para a sua conservação.
Mais abrangente será a aplicação para telemóvel “A Grande Caça aos Ovos” que esta equipa lançou. Este é um projecto de ciência-cidadã “importado” do Reino Unido, dizem os investigadores que explicam que “esta aplicação permite que qualquer pessoa que encontre ovos de raia ou tubarão na praia, possa tentar identificar a que espécie pertence e efectue o registo deste achado, através do upload de uma fotografia e da sua localização geográfica exacta”. A aplicação foi lançada em Junho e neste momento já conta com mais de 600 ovos registados, o que permite ter “uma pequena noção da importância de determinadas zonas para estas espécies, incluindo algumas que se encontram ameaçadas”.