Combater a corrupção: à 22ª. vez, será de vez?
Na ausência de uma entidade independente que supervisione a implementação da estratégia nacional contra a corrupção, caberá ao primeiro-ministro, e ao seu gabinete, coordenar aquela que pode ser a grande reforma social do século XXI português. Se tiver sucesso, assegurará um lugar na História.
Nenhum outro programa de governo no século XXI consagrou tanto espaço ao combate à corrupção como o do XXII Governo Constitucional. As 26 vezes que a palavra “corrupção” aparece no programa contrastam com as três vezes constantes no programa da “geringonça”, com as 17 vezes do segundo governo de Sócrates (o segundo programa de governo neste século com mais referências ao combate à corrupção) e as zero menções explícitas dos governos de Durão Barroso e de Santana Lopes.
Este governo tem assim uma indiscutível responsabilidade histórica e oferece-nos uma oportunidade ímpar para um escrutínio concreto e democrático das políticas de combate à corrupção. Uma oportunidade que não pode ser desperdiçada, também por imperativos da política europeia: o primeiro-ministro poderá ser chamado a representar a União Europeia durante a Assembleia Geral Especial das Nações Unidas dedicada ao combate à corrupção, durante o primeiro semestre de 2021. A credibilidade desse inevitável e importante discurso fundar-se-á, naturalmente, nas deliberações do Conselho Europeu. Mas não escapará às circunstâncias do combate à corrupção em Portugal.
Os custos da corrupção para Portugal são estimados em mais de 18 mil milhões de euros por ano, cerca de 8% do produto interno bruto (relatório do grupo no Parlamento Europeu dos Verdes/Aliança Livre Europeia). Esse valor representa mais do que gastamos dos nossos impostos com o Serviço Nacional de Saúde e bem mais do dobro do que gastamos com Educação. Mesmo adotando uma postura cínica e defensiva em relação a tais estimativas, muitas vezes usadas com intuitos propagandísticos, e corrigíssemos aquele valor em dois terços, estaríamos ainda a falar do equivalente a cerca de 100 vezes o que gastamos com habitação pública. É, portanto, razoável assumir que um combate à corrupção, decisivo e de curto prazo, pode ter um impacto tangível no crescimento económico e nos saldos orçamentais nacionais. Grande parte destes capitais são acumulados fora da economia legal, e por força de serem injustificados, tornam-se não-produtivos, aplicados em mercados ilegais, num ciclo vicioso que gera mais corrupção. Combater a corrupção não é (nem deve ser) uma questão moral da governação; é uma questão de crescimento económico, resultando em bem-estar dos portugueses, incluindo das gerações vindouras.
O governo parece ter compreendido algo essencial: o combate à corrupção (que inclui o tráfico de influências políticas) vai muito para além da ação legislativa. Ele deve incluir práticas que diminuam o seu valor relativo e riscos associados, que tornem transparentes os processos onde maior risco de corrupção existe, que eliminem portas giratórias e deve apoiar-se igualmente em políticas que corrijam as suas razões de fundo. Em grande medida, tal só será possível com crescimento económico (que é potenciado com políticas ativas de combate à corrupção) e com a melhoria generalizada das condições de vida, acompanhado pela saída dos últimos lugares ocupados por Portugal nas listas europeias sobre os nossos níveis de qualificação.
Todavia, o governo persiste numa ideia que tem feito caminho: a da desnecessidade de aumentar meios e recursos. Os meios técnicos e de perícia à disposição do DCIAP e do seu Núcleo de Assessoria Técnica (menos de cinco especialistas para as áreas financeira, contabilística e informática) são verdadeiramente risíveis no mundo atual do cibercrime transnacional, das tecnologias de distribuição de registos, da sofisticação das soluções legais para ocultação de atividades criminosas e da densa interligação de sistemas e transferências financeiros. Pelo que o governo deve continuar a assegurar o aumento dos meios e recursos para o combate à corrupção, sem nenhuma hesitação.
O programa de governo também falha na falta de abordagem de um tema que marcou o anterior governo e que se relaciona com regimes de incompatibilidades e de impedimentos. Estudos recentes mostram que o fator determinante do compadrio é a relacionalidade pré-existente (filial, amizade, escola ou faculdade comum, político-partidária, sociedades secretas), porque estabelece a necessária confiança estratégica, como lhe chamou Della Porta e Mény, para ações de favorecimento. Algo que em 1349 já não passava despercebido, a propósito da colocação de juízes: “Os juízes da terra sentir-se-ão no pleno direito, em muitas ocasiões, de não aplicarem a justiça de maneira adequada [...] porque os naturais da paróquia terão aí muitos amigos e parentes assim como muitos outros a quem estarão ligados por obrigações de sociedade ou por outros vínculos. Outros poderão acalentar ressentimentos e inimizade para com eles [os juízos nascidos na terra] ou poderão temê-los. É, pois, justo e conveniente presumir que os juízes locais não desempenharão as suas funções tão bem como se fossem estranhos” (exposição de motivos da Lei de 21 de março de 1349, que cria o cargo de Juiz de fora).
No espaço público, a proximidade excessiva entre titulares de cargos públicos não deve ser discutida sob a perspetiva de ser justo ou injusto alguém, com mérito comprovado, ser impedido de desempenhar um cargo por razões da sua circunstância familiar. Não é essa a questão principal. A discussão é mais complexa e menos paroquial. Ela deve centrar-se no facto de tal concentração de acesso a informação, formal e informal, ser um fator indesmentível de desigualdade de acesso, numa sociedade relativamente pequena e fechada (porque ainda isolada de fluxos cosmopolitas) e dependente do Estado numa medida muito considerável. As informações e o conhecimento (e a acumulação dessa mais valia) que decorrem do exercício de funções públicas são um bem escasso. Concentrar o seu acesso cria espaços de risco que são desnecessários e evitáveis. Num mecanismo não muito diferente da acumulação de capital e da apropriação da mais-valia, os seus efeitos são semelhantes aos de uma oligarquia na economia. Se no caso das partilhas legais de informação e de conhecimento, as ligações familiares são, pelo menos, apenas mais um fator de reprodução das desigualdades, já no caso de uma eventual partilha ilegal, mesmo que involuntária, ela constitui-se como um risco assinalável de corrupção. Em qualquer dos casos, totalmente inaceitável para qualquer socialista e para qualquer republicano.
A maior parte das 30 medidas concretas constantes das páginas 30 a 33 do programa de governo não exigem qualquer iniciativa legislativa. Elas decorrem diretamente das recomendações do Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO) e da segunda avaliação da ONU à implementação nacional da Convenção contra a Corrupção (em vigor em Portugal desde 2007). Esta incorporação no programa de várias das recomendações internacionais é um testemunho importante da importância e eficácia dos mecanismos de monitoramento da implementação de convenções internacionais e do apoio que o Estado português lhes confere. Registe-se, contudo, que nem todas as recomendações internacionais fazem parte do programa de governo. Por razões que se desconhece.
Olhando para as 30 propostas do governo de António Costa, cinco medidas relacionam-se com mitigação de riscos no processo legislativo e com o Simplex, sendo tais matérias da responsabilidade da ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, da secretária de Estado da Inovação e da Modernização Administrativa, do secretário de Estado da Administração Pública e, eventualmente, do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros.
A fatia de leão cabe ao ministro das Finanças e ao secretário de Estado Adjunto e das Finanças, a quem caberá, em princípio, implementar pelo menos nove das 30 medidas. Estas medidas pretendem incentivar mais transparência e controlo de riscos de corrupção nos procedimentos administrativos relacionados com despesa pública e com a contratação pública em geral. Algumas necessitarão de coordenação com o ministro das Infraestruturas e da Habitação, sobretudo considerando o ambicioso programa de obras públicas anunciado, como a construção de vários hospitais e de um novo aeroporto, a reabilitação da ferrovia e o renascimento de uma política pública de habitação.
A ministra da Justiça e o secretário de Estado Adjunto e da Justiça terão uma tarefa clara, na sua responsabilidade de representarem o Estado português perante o GRECO. Terão eventualmente de coordenar meios e discussões substantivas com a PJ e a PGR na preparação do pacote legislativo necessário (propostas de lei a submeter à Assembleia da República e decretos-lei) para o cumprimento de pelo menos seis medidas (designadamente na revisão do atual quadro penal e na criação de novas obrigações para entidades reguladoras e associações públicas profissionais). Várias destas medidas decorrem de orientações da União Europeia.
Merece também destaque a proposta que obrigará certas empresas a cumprir requisitos mínimos para os seus programas de compliance e a manter planos de prevenção da corrupção, ação que se presume caberá ao ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital e ao seu secretário de Estado Adjunto e da Economia. Mas também ao secretário de Estado da Internacionalização, sob alçada do ministro dos Negócios Estrangeiros, cuja ação não pode ignorar as nossas obrigações internacionais ao abrigo da Convenção da OCDE sobre a Luta contra a Corrupção de Agentes Públicos Estrangeiros nas Transações Comerciais Internacionais. Assinale-se aqui que o programa de governo ignora as recomendações resultantes da avaliação de Portugal (Fase III) na implementação desta Convenção. Esta é uma área onde se antecipam riscos acrescidos se tivermos em consideração, por exemplo, o anunciado programa de privatizações angolano.
Algumas medidas parecem não ser inteiramente da responsabilidade do governo, cabendo, eventualmente, à recentemente criada Entidade para a Transparência, ou à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos ou ao Tribunal Constitucional. Mas reconhece-se que o governo pode ter um papel impulsionador de medidas tão importantes como a publicação mais eficiente das contas dos partidos políticos, de forma uniformizada e facilitando o seu acesso; ou como a modernização do registo de interesses dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos e respetivo cruzamento de dados. Por outro lado, o governo é claro na partilha de responsabilidades nesta área quando deixa um recado à Procuradoria-Geral da República, com a nova proposta de “incluir o grau de aproveitamento e aplicação dos mecanismos legalmente existentes no âmbito do combate à corrupção nos relatórios de política criminal” que aquela deve apresentar à Assembleia da República.
Em suma, parece-nos que à 22ª. vez, poderá ser de vez. Com exceção das medidas que exigem iniciativa legislativa na Assembleia da República, as restantes propostas podem ser implementadas em menos de dois anos. Estarão assim criadas as condições ideais para que Portugal celebre em 2022, de forma marcante, os 20 anos de adesão ao GRECO – permitindo ao atual Presidente da República, caso a sua saúde lhe permita recandidatar-se, e caso seja reeleito, enfrentar com mais à vontade o plenário do Conselho da Europa, sem sofrer a humilhação de 26 de Julho passado.
A vontade política plasmada no programa de governo, esta palavra dada, tem que ser coordenada e aprofundada, para poder ser honrada. Um dos principais obstáculos é a omissão no programa de governo da recomendação número 1 feita pela ONU, no contexto da avaliação da aplicação da sua Convenção contra a Corrupção: estabelecer uma entidade, ou atribuir a mesma responsabilidade a um órgão existente, com a necessária independência e com meios suficientes, para supervisionar e coordenar a implementação da estratégia nacional contra a corrupção. Tal entidade, pensamos, poderia inspirar-se no modelo britânico do Serious Fraud Office ou no modelo francês da Agence française anticorruption. Na ausência de tal proposta, resta assumir que cabe ao primeiro-ministro, e ao seu gabinete, coordenar aquela que pode ser a grande reforma social do século XXI português. Se tiver sucesso, assegurará um lugar na História. Seria por isso da maior importância para o país que António Costa reafirmasse as propostas do seu governo, e a sua vontade política em combater este flagelo que nos condena a mais pobreza, perante a 8ª. Conferência dos Estados Parte da Convenção da ONU Contra a Corrupção, em Dezembro próximo, em Abu Dhabi.
João Ribeiro investiga na Universidade de Cambridge o papel dos diplomatas privados na negociação de tratados internacionais e respetivas questões de legitimidade. Foi Diretor do Centro Regional Ásia-Pacífico da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (2013-2018). Em 2020 e 2021 publicará, respetivamente, os livros “A cunha como conduta social – as figuras que as pessoas fazem” e “Ensaio sobre o compadrio em Portugal”. jmt90@cam.ac.uk
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico