Cozinhados de conteúdo sólido, aromas de forno e de tacho
O cabritinho com arroz de carqueja chega à mesa numa assadeira e em dois alguidares, as tripas em púcara de barro vidrado. O tempo não altera a Cozinha do Martinho.
Posto em sossego há várias décadas, o restaurante Cozinha do Martinho acordou em sobressalto quando nos inícios de 2017 correu a notícia da visita do mediático Anthony Bourdain, que lá foi levado para saborear e conhecer a receita das tripas à moda do Porto. Um abanão que não chegou, no entanto, para alterar as estruturas de um clássico da boa cozinha portuense.
Apesar da curiosidade repentina, das reportagens de ocasião e dos turistas que passaram a chegar com o papelinho na mão indicando da morada que entregaram ao taxista que os conduziu, pouco ou nada se alterou. E ainda bem porque a essência da casa está precisamente na matriz tradicional da sua cozinha, no serviço pausado, com muita simpatia e toques de certa formalidade. Nessa patine do tempo, portanto, que por aqui é ainda cuidada com gosto e carinho.
Não agradará a todos, é claro. Mas, como dizia o outro: é a vida, meus caros! Uma vida que continua a pautar-se pelo ritmo pausado, pelos produtos do dia e de temporada em cozinhados de conteúdo sólido, aromas de forno e de tacho, travessas, assadeiras e púcaras em barro vidrado e o princípio de que tudo é confeccionado na hora.
O cabritinho ou a vitela assados com arroz de carqueja, os bacalhaus e o polvo, o cozido à portuguesa, de vez em quando, fígado de cebolada, rojões à moda do Minho, caça quando a haja e, claro, as tripas à moda do Porto.
A sala é também ela bem demonstrativa desse apego ao tempo. Comprida, balcão em fundo a separar da cozinha, tecto alto e luzes dirigidas às mesas. Paredes decorada com azulejos e painéis de madeira castanha que se intercalam, havendo também um grande armário em madeira de castanho e uma colecção de cataplanas de cobre, a completar o ambiente de salão clássico tradicional.
As mesas, quase todas redondas, estão adequadamente separadas, aparelhadas e cobertas com dupla toalha de tecido, a contrastar com a nudez que é a finesse de agora nos restaurantes mais conceituados.
A carta é apresentada numa versão diária, mas apenas com pequenos ajustes face ao que é o padrão da casa. Três variações sobre o bacalhau (à moda de Braga, com broa, ou assado brasa), robalinhos grelhados, cabritinho e vitelina com arroz de carqueja, tripas, bife laminado, presas e lombinhos de porco na gralha, compunham a oferta do dia que acrescentava ainda um creme de legumes e três doces para sobremesa.
Sem pedido, pratinho com rodelas de salpicão e de salame, e triângulos de queijo manchego (7,60€) e também azeitonas temperadas (2,50€), de boa qualidade, tal como o enchidos cujo sabor foi melhorando à medida que se libertavam do frio em que foram guardados.
Sem opções para outras entradas ou petiscos, segue-se um tempo vazio até que o primeiro prato acabe de cozinhar.
Valeu a pena a espera, já que o bacalhau com broa (24,92€) apresentou uma daquelas portas de boa cura, lombo alto, lascas firmes e gelatinosas, como já pouco e encontra. Posta completa servida na assadeira em que foi ao forno, cebola na base, cobertura com batata frita aos cubos e miolo de brilha de milho tostado a envolver-se com o molho de azeite. Dose de substância, para apreciar em dupla ou tripla companhia.
Dois alguidares e uma assadeira sobre a mesa para apresentarem a dose do cabritinho com arroz de carqueja (26,92€). Peças de partes variadas de assadura primorosa, carnes a separar-se dos ossos, sabor envolvente e gorduroso. Batatas aos gomos a compor o assado e, nos pequenos alguidares em barro vidrado, o aromático e gorduroso arroz de carqueja e um esparregado banal.
Dose igualmente à medida de dois ou três comensais no bife laminado (18,92€), que acompanhou com saborosas batatas fritas em grossos palitos. Sim, daquelas que avivam memórias e sensações do tempo em que tudo sabia mesmo a comida. Posta longa e alta de vitela, interior brilhante e suculento, a mostrar qualidade, capacidade e rigor no trabalho de cozinha.
Para fecho, as tripas fumegantes servidas em púcaro de barro, numa dose (13,92€) que quase convoca a turma inteira para a devorar. Um primor!
Pode ou não apreciar-se a presença de cominhos (muito suave), o chouriço com pimentão ou a carne de vitela, mas o cozinhado é e exemplar. Molho envolvente sem chegar a ser caldoso, feijão a rebentar na boca, mão de vitela e as tripas nas suas componentes (folhinhos, favos e bucho) em pedacinhos impecavelmente cortados e cozinhados. Nota-se mão e saber, com as texturas das várias carnes bem definidas, gelatinas e cartilagens da vitela de igual modo, num conjunto equilibrado, saboroso e assertivo e claramente distinto daqueles caldos com tudo que muitas vezes se confundem com a tipicidade do cozinhado.
Nas sobremesas, por entre o bolo e a mousse de chocolate, optou-se por provar o indiferenciado pudim abade Priscos (3,95€), quase para adocicar o café.
Também nos vinhos é visível a patine do tempo. Neste caso sem se poder saborear, já que clássicos e históricos como Barca Velha, colheitas de Mouchão, Colares, garrafeiras Dão e Bairrada das décadas de 80 e 90 estão depositados como relíquias numa mesa central e apenas como de coração.
A oferta actual cinge-se a umas quantas propostas de Douro e Alentejo (e também Verdes) com evidente propósito de preços abordáveis, mas claramente longe daquilo que pede a pujança das comidas.
Vale a pena revisitar o ambiente, os cozinhados sólidos e saborosos da restauração de finais do século passada. É seguro que deste Cozinha do Martinho se sairá sempre satisfeito e saciado. Mas provavelmente também com aquela sensação de que falta mesmo só um tudo nada para que saltem também o prazer e a emoção.