Pensa em alterações climáticas: que imagem te vem à cabeça?
No mundo real e na consciência colectiva, as alterações climáticas deixaram de ser uma ameaça do futuro. E as imagens usadas para as retratar estão a mudar.
Fecha (ou não) os olhos e pensa em alterações climáticas. Que imagens te vêm à cabeça? Até há bem pouco tempo, este exercício poderia trazer-nos imagens de glaciares a derreter, chaminés de fábricas com densas nuvens de fumo, ursos polares. Talvez referências mais cinematográficas: tempestades, inundações, uma Nova Iorque coberta de neve em O Dia de Amanhã (2004). Mas o cenário mudou. Hoje, os impactos das alterações climáticas são mais evidentes, em maior escala e mais próximos.
Há décadas que a Greenpeace utiliza a fotografia e o vídeo não só para documentar o seu activismo mas também para mostrar ao mundo imagens de ambientes e animais em risco que é preciso proteger. O objectivo é mobilizar, apelar à acção, à mudança. “Analisamos as nossas campanhas regularmente para perceber que imagens tiveram mais impacto na nossa audiência e quais são as mais eficazes para inspirar à acção”, explica ao P3 Matt Kemp, editor multimédia da Greenpeace. Imagens com um tom positivo e de esperança são as que mobilizam mais, ao contrário de imagens fatalistas.
O enquadramento imagético da preservação, de algo que era preciso proteger para não desaparecer no futuro, deu lugar ao do que é visível agora, do que constitui prova dos impactos das alterações climáticas. As imagens de paisagens distantes frágeis, o urso polar, estão, garante Matt Kemp, a ser abandonadas a favor de imagens de incêndios florestais, secas, eventos meteorológicos extremos.
“Até há poucos anos era considerado inapropriado relacionar imagens, por exemplo, de furacões e tufões às alterações climáticas”, nota Matt. Fazer essa ligação directa com desastres específicos era visto como tendencioso e inaceitável. “Contudo, hoje, a maioria das pessoas percebe e aceita essa ligação clara entre um planeta cada vez mais quente e fenómenos como incêndios florestais, secas, acidificação dos oceanos”, explica. E com isso, acredita, a quantidade e qualidade de imagens que passou a ser possível utilizar aumentou significativamente.
É preciso um novo vocabulário visual “climático”?
Nos últimos dois anos, as alterações climáticas entraram na agenda política e mediática, com vozes como a de Greta Thunberg ou do movimento Extinction Rebbelion a difundirem os termos “crise” e “emergência” como uma forma mais correcta de descrever os impactos dessas alterações. Não é apenas o vocabulário textual que está a mudar. Num artigo publicado no início deste mês de Outubro, o jornal britânico The Guardian anunciou aos leitores que está a repensar as imagens fotográficas que utiliza nos seus artigos e reportagens sobre o tema. “Após o debate entre editores sobre como deveríamos mudar a linguagem que usamos na cobertura de temas ambientais, a nossa atenção virou-se para as imagens”, escreveu a editora de fotografia Fiona Shields. Em Maio, o mesmo jornal alterou o seu livro de estilo de modo a incluir as expressões “crise” e “emergência climática”. “Alterações climáticas” não era “cientificamente preciso” e era até “passivo quando aquilo de que os cientistas estão a falar é de uma catástrofe para a humanidade”, justificou o jornal britânico. Se mudar as palavras importa (em Portugal, o Ministério do Ambiente e Transição Energética, por exemplo, passou a designar-se Ambiente e Acção Climática), o que está em causa quando se fala em mudar o vocabulário visual?
Se fizermos o exercício simples de pesquisar num motor de busca online as palavras “climate change” (alterações climáticas), os resultados ainda confirmam a predominância da generalização, dos cenários remotos e, sobretudo, da falta do elemento humano nesse retrato. “Ainda existe um uso excessivo das mesmas metáforas”, defende Toby Smith, director do projecto Climate Visuals, uma plataforma online de pesquisa de imagens sobre alterações climáticas lançado em 2016.
Através de estudos sociológicos, inquéritos e grupos de discussão que dinamizam, o projecto Climate Visuals analisa o efeito deste tipo de imagens para ajudar a conceber campanhas de comunicação mais eficazes. No último ano, trabalharam com o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês), naquela que foi a primeira vez que a organização decidiu utilizar imagens fotográficas na comunicação do relatório que é visto como um marco no combate à crise climática. Uma análise de mais de seis mil estudos científicos produzidos nos últimos anos – a cargo de 91 cientistas e revisto por milhares de especialistas e representantes de vários governos – que apelou à urgência de se limitar o aumento da temperatura global a 1,5 graus Celsius, de modo a atenuar os efeitos nefastos do aquecimento global no ambiente, na saúde, biodiversidade, produção de alimentos e condições de vida.
O desafio lançado ao projecto Climate Visuals foi o de identificar 25 imagens que o IPCC pudesse utilizar em diferentes plataformas de comunicação. Como traduzir um relatório tão extenso e detalhado numa pequena selecção de imagens? Seguiram, desde logo, os princípios que definiram para uma comunicação visual climática eficiente, como mostrar pessoas reais ou os impactos locais. E apoiaram-se nos resultados de inquéritos recentes, que demonstraram que as imagens “cliché” provocavam fadiga e que as fotografias de políticos e activistas não são muito bem aceites, ao contrário de imagens de pessoas reais em situações reais, que geram empatia.
No banco de imagens do Climate Visuals — mais de 800 fotografias, algumas delas de acesso gratuito — privilegia-se, ainda, o elemento humano. Uma trabalhadora que limpa painéis fotovoltaicos e não apenas um campo onde se alinham centenas de painéis. A imagem “cliché” das chaminés de fumo também lá está, mas com uma diferença: junto às chaminés vêem-se prédios de habitação. Aquilo que contribui para as alterações climáticas não é algo longínquo: conseguimos vê-lo da janela de nossa casa.
A tomada de posição do The Guardian veio lançar a discussão nas redacções, também em Portugal. Num artigo do PÚBLICO sobre a subida do nível médio do mar, Miguel Manso, editor de fotografia do PÚBLICO, preferiu escolher uma imagem de uma casa em risco de derrocada, junto ao mar em Esposende, do que uma fotografia onde se via sobretudo a fúria de uma onda. “Era mais apelativa a nível estético, mas não traduzia os impactos da subida do nível do mar “, explica.
O desafio, porém, pode ser mais complexo. Em Junho deste ano, as edições online dos jornais encheram-se de fotogalerias sobre a onda de calor na Europa com imagens de diversão: banhistas inesperados em fontes junto à Torre Eiffel, Paris, ou crianças a brincar em repuxos de água em Madrid. A galeria de imagens do The Guardian incluía esse tipo de fotografias. Mais tarde, os editores decidiram actualizá-la, acrescentando imagens de fogos florestais e de pessoas a receber assistência médica por causa do calor. “Percebemos que o que tínhamos estava errado e ignorava o contexto actual”, justificou Katharine Viner, directora do jornal.
“Por vezes essas imagens não estão disponíveis”, afirma Miguel Manso. “Se hoje pesquisar ‘onda de calor’ no nosso serviço fotográfico de agência, a grande fatia das imagens que aparecem listadas são essas, de pessoas a refrescar-se.” Toby Smith e a equipa do Climate Visuals analisaram os conteúdos noticiosos fotográficos sobre as ondas de calor que em Julho e Agosto de 2019 atingiriam o Reino Unido e encontram problemas a montante: na forma como o pedido daquelas fotografias chegava aos fotojornalistas e, posteriormente, no modo como as fotografias eram identificadas, partilhadas e distribuídas no serviço da agência noticiosa internacional.
Ainda que relacionar fenómenos meteorológicos extremos com a crise climática seja hoje aceite, é preciso estar alerta. Estabelecer, como norma, que sempre que haja uma onda de calor é obrigatório falar das alterações climáticas “não é um bom caminho”, diz ao P3 Ricardo Garcia, antigo jornalista do PÚBLICO, que há mais de 30 anos se dedica à área do ambiente e da ciência. “Uma onda de calor específica não pode ser atribuída ao clima. O mesmo vale para a imagem, onde acredito que o que mais importa é a sensibilidade do repórter fotográfico”, defende.
Para Ricardo Garcia, que em Fevereiro de 2020 orientará, em conjunto com o cientista e investigador Miguel Bastos Araújo, um workshop para jornalistas sobre a cobertura das alterações climáticas, a solução não está em mudar o livro de estilo nas redacções. “À medida que aumenta o conhecimento que os próprios jornalistas têm das alterações climáticas, o leque de imagens possíveis alarga-se porque os temas também se ampliam”, explica. “No caso das ondas de calor, uma das fotos mais expressivas que vi foi dos caixões enfileirados numa funerária de Paris, no incandescente Verão de 2003. Afinal, um dos principais efeitos das ondas de calor é o aumento da mortalidade.”
Mais conhecimento, mas também novas vozes produtoras dessas imagens. Para Danielle da Silva, fotógrafa e fundadora dos Fotógrafos Sem Fronteiras que, no final de Novembro, estará em Portugal para o National Geographic Exodus Aveiro Fest, “a proximidade é crucial”. Fotógrafa e conservacionista premiada, Danielle trabalhou com centenas de organizações não-governamentais e várias outras organizações internacionais, viajou por mais de 80 países e faz parte do Top 30 Under 30 Sustainability Leaders do Canadá. “Precisamos de ver realidades, modos de vida e sistemas económicos alternativos”, diz ao P3, e para isso é fundamental dar palco a novos protagonistas, nomeadamente nas comunidades indígenas com quem tem trabalhado de perto. “Estas novas perspectivas não devem vir de fora destas comunidades. Há muito trabalho a fazer para trazer fotógrafos e storytellers de comunidades indígenas” para o cenário dos media. Além disso, explica ao P3, acredita que o problema não está meramente nas imagens: “São as histórias e os próprios enquadramentos que escolhemos, também.”
O impacto das fotografias: choque, depressão, acção?
Em Dezembro 2017, uma imagem – fotográfica e em vídeo – de um urso polar esquelético, a cambalear e a procurar comida em caixotes do lixo, correu o mundo. 25 mil milhões de visualizações das imagens difundidas pela National Geographic com o título: “Isto são as alterações climáticas.” Nos meses seguintes, os autores das imagens — a dupla de fotógrafos Cristina Mittermeier e Paul Nicklen — foram amplamente louvados e criticados. Se a Ciência já tinha estabelecido uma relação forte entre o degelo e a morte dos ursos polares (as alterações climáticas têm provocado um aumento de temperaturas no Árctico o que, consequentemente, diminui o gelo, fundamental para a caça dos ursos polares), não se sabia se esse era o caso do urso que Cristina e Paul fotografaram e filmaram na Ilha de Baffin, a maior do Árctico do Canadá. “Tínhamos enviado uma imagem angustiante para o mundo”, escreveu mais tarde Cristina Mittermeier. E não previram os impactos que ela poderia ter.
"When scientists say bears are going extinct, I want people to realize what it looks like," says photographer Paul Nicklen pic.twitter.com/foBaqXqOQ4
— National Geographic (@NatGeo) 9 de dezembro de 2017
“Se quisermos comover os públicos ou gerar elevada tensão emocional, remorsos e culpabilização de terceiros, é preciso pensar sobre se isso trará mudanças efectivas e quais. Tenho sérias reservas em relação aos efeitos práticos da abordagem apocalíptica”, diz ao P3 Naíde Müller, doutoranda na Universidade Católica Portuguesa e investigadora júnior no Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (CECC), na área da comunicação estratégica e do activismo contemporâneo. Naíde Müller está de saída do cargo de assessora de comunicação do partido Pessoas -Animais-Natureza (PAN) para se dedicar à investigação nesta área, mas foi também no contexto da comunicação política que se apercebeu da necessidade de criar aquilo a que chama “novos significados funcionais” em torna da comunicação sobre as questões climáticas. “Se queremos alterar percepções precisamos gerar um efeito de aproximação real às experiências dos outros”, explica.
Na campanha para as recentes eleições legislativas, o mote do PAN foi “Ainda vamos a tempo”. Para o ilustrar recorreram a imagens que combinavam o impacto das alterações climáticas, mas também uma mensagem de esperança, como uma planta a furar solo seco e imagens de uma baleia com a sua cria. “Por princípio, o PAN não recorre a estratégias de comunicação assentes no medo para estimular mudanças de comportamentos”, garante Francisco Guerreiro, eurodeputado do PAN e director de comunicação do partido. A estratégia passa por escolher imagens “orientados para as soluções” e que suscitem “o envolvimento de cada vez mais pessoas neste desafio conjunto”, explica.
Para a fotógrafa Danielle da Silva, que na sua dissertação de mestrado se dedicou à psicologia da “mensagem climática”, a narrativa apocalíptica leva à apatia emocional. “Tem de haver um apelo à acção em cada artigo, cada post nas redes sociais, para que as pessoas ultrapassem a ansiedade e se sintam empoderadas”, explica. Nas suas fotografias, tenta fugir da narrativa da crise e ter uma abordagem mais holística. “A nossa ligação com a terra, com a água, os outros seres (humanos e não humanos) é muito maior do que as imagens de ursos polares famintos, glaciares a derreter, ou pessoas afectadas por eventos meteorológicos extremos. As pessoas têm de ver o que é possível e reinventar a sua relação com o que as rodeia”, conclui. “Como retratamos isso visualmente virá depois de entendermos tudo isto.”