“A ‘geringonça’ adocicou a social-democracia”, critica Via Esquerda
Há uma corrente crítica no Bloco de Esquerda que não gostou de ver o partido elogiar a “geringonça” e a apostar num discurso de “estabilidade” e “contas certas”.
Para a Via Esquerda, uma corrente interna do Bloco de Esquerda que existe desde 2018, os bloquistas devem assumir o papel de oposição ao Governo socialista. Num texto publicado no seu site, este grupo sublinha que os resultados das eleições legislativas trouxeram para o PS e para o bloco central um “equilíbrio de forças favorável”. “O PS não conseguiu maioria absoluta, mas passou a ter na Assembleia da República uma confortável capacidade negocial”, escreve a Via Esquerda. E faz uma leitura clara do acordo governativo de 2015: para a Via Esquerda, a “geringonça” promoveu António Costa e adocicou a social-democracia. Num texto que se apresenta como o “rescaldo das legislativas”, a Via Esquerda aponta críticas ao próprio partido e condena a estratégia adoptada pelos dirigentes bloquistas com o seu discurso de “estabilidade” e “contas certas”.
Para os bloquistas da Via Esquerda, “o PS foi o principal beneficiário eleitoral da ‘geringonça'”. Os elogios tecidos pela esquerda — incluindo por Catarina Martins e outros dirigentes do partido — contribuíram para a construção dessa imagem positiva sobre o PS, assume o grupo.
Uma das vozes deste grupo de militantes descontentes com as escolhas da direcção nacional do BE é a de António Soares Luz, um dos fundadores do BE e histórico responsável pela distrital do Porto. Ao PÚBLICO explicou que o grupo decidiu não criticar publicamente a estratégia e campanha do Bloco “para não criar ruído em período de eleições”. “Eles fazem um balanço e nós fazemos outro”, justifica. “Nós temos uma posição muito mais à esquerda”, continua. Para o histórico bloquista, a actual direcção nacional do BE faz uma oposição “muito mais macia” do que aquela que ambicionaria para o partido.
Para estes críticos, “a estratégia falhou”. “Há uma diferença clara entre a posição do PCP e a posição do Bloco”, aponta. Reconhecendo que a posição do PCP reflecte também a perda de cinco deputados (em 2015 a coligação CDU elegeu 17 deputados, mas nestas legislativas elegeu apenas 12), António Soares Luz diz não compreender “o namoro tão acérrimo ao PS”.
Durante toda a campanha eleitoral, e apesar de um arranque menos pacífico com os socialistas, o Bloco de Esquerda elogiou a “geringonça”, lembra o Via Esquerda. Em Lisboa, no mega-almoço de campanha, Catarina Martins afirmou mesmo que a “geringonça” foi “a melhor notícia que Portugal teve nos últimos quatro anos”, mas a ementa de elogios não caiu bem a todos os bloquistas. Além dos louvores à “geringonça”, o Bloco de Esquerda ajustou o discurso, aproximou-o do PS e apresentou-se como o “verdadeiro partido das contas certas”. A campanha dos bloquistas moderou o discurso e assentou a sua uma narrativa na “estabilidade”, na “responsabilidade” e no “bom senso” que representaria um voto no Bloco. Um erro, considera António Soares Luz.
Para o Via Esquerda, o apelo a uma “reedição da ‘geringonça'” e a nova narrativa “favoreceu a ideia da campanha PS de que a próxima maioria — para ser plural — teria de ser com um PS mais forte”. Assim, para este grupo de bloquistas, “a sobrevalorização do acordo de maioria, em vez de criar alguma dificuldade ou demarcação com o PS, acabou por ser oportuna para a campanha de António Costa”.
“Não expôs as limitações da ‘geringonça’, adocicou a social-democracia, que já não é mais do que uma máscara do neoliberalismo e agravou ilusões sobre o carácter do PS, não desmontando o alinhamento deste com a política macroeconómica neoliberal defendida por Bruxelas e Berlim”, acusa o grupo.
Para estes militantes foi um erro “insistir nesse acordo, considerá-lo a alternativa e colocá-lo no centro da campanha do BE”, porque “além de alimentar um logro, retirou centralidade às propostas do programa bloquista” e “debilitou a capacidade de polarização à esquerda”.
Menos acordos, mais oposição
Rejeitada a proposta de acordo que o Bloco de Esquerda apresentou a António Costa, caiu a hipótese de um acordo de legislatura com o PS. Lamentada por Catarina Martins, a notícia foi um alívio para estes militantes bloquistas que acreditam que um acordo “nas condições parlamentares actuais aprofundaria um compromisso insustentável que levaria à captura da autonomia e da radicalidade política do Bloco”. E traçam aquele que acreditam que deve ser o caminho dos bloquistas: assumir a responsabilidade de ser a oposição ao PS. “O Bloco não faz parte da maioria parlamentar de suporte ao Governo PS: deve ser oposição influente.”
Para isso, o Bloco de Esquerda deverá “apresentar propostas para melhorar as condições de vida das populações, conseguir patamares mais exigentes de direitos sociais e enfrentar com políticas públicas a emergência climática”, lê-se. A oposição deverá ser feita “ao lado das mobilizações e das lutas sociais” com a “destroikização do Código do Trabalho e pela contratação colectiva, pelo fim das PPP [Parceria Público-Privadas] no Serviço Nacional de Saúde, pelo controlo público de bens estratégicos e do sistema financeiro, pela regionalização e contra os círculos uninominais na lei eleitoral”. A defesa do investimento nos serviços públicos, na oferta pública de habitação, na ferrovia e na transição energética e agro-ecológica, o aumento dos salários e das prestações sociais, colocam o Bloco na oposição à política do PS do excedente orçamental, das cativações e do serviço de uma dívida impagável”, acrescentam.
Antecipando uma “situação de crise ou de recessão económica, como se prevê”, a Via Esquerda pede uma “demarcação do ‘geringoncionismo'” e vinca que “o Bloco não poderá estar de algum modo associado a quem determina essas políticas, sem equívocos, porque se assume desde já como oposição”.
Ao PÚBLICO, António Soares Luz diz lamentar “a falta de abertura para discussão interna” e diz esperar que a direcção do Bloco de Esquerda assuma uma atitude mais crítica contra os socialistas.
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