O problema internacional da independência da Catalunha
1. A Catalunha poderia muito bem ser um Estado independente. Tem argumentos históricos para isso. Tem uma identidade própria que se manifesta em termos linguísticos e culturais. Ao mesmo tempo, sendo uma das regiões mais ricas da actual Espanha, teria, tudo indica, viabilidade económica. Uma parte substancial da sua população pretende a independência. Em respeito do princípio democrático e do princípio da autodeterminação nacional, a solução seria efectuar um referendo. Nele, a população da Catalunha iria pronunciar-se, livremente, a favor da independência ou então pela manutenção em Espanha. Noutras democracias ocidentais foi essa a solução, como mostram os casos do Reino Unido (Escócia) e do Quebeque (Canadá). Mas em Espanha a actual Constituição não permite tal solução pela via do referendo.
Quanto a uma revisão constitucional para o admitir, é extraordinariamente difícil de efectuar e implausível nas actuais circunstâncias políticas. O resultado é um bloqueio constitucional. Todavia, o problema é bem mais complexo do que a expectável oposição espanhola à sua independência. As discussões concentram-se aí mas, ao contrário do que parece à primeira vista, os entraves a uma Catalunha independente — admitindo que seria essa a vontade maioritária — vão além da oposição do Estado espanhol e da criminalização de certas actividades pró-independência, cujas sentenças geraram uma onda de contestação nas ruas.
Uma faceta pouco abordada é a dimensão internacional desses obstáculos, que é uma barreira maior às tentativas de independência. Essa dimensão internacional leva-nos ao princípio da autodeterminação e à questão do reconhecimento de um novo Estado que examinarei em seguida.
2. A autodeterminação nacional, ou autodeterminação dos povos, é uma das questões mais difíceis e complexas na política mundial. Não tem, nem ao nível do Direito Internacional — por exemplo, na Carta das Nações Unidas —, nem ao nível político, uma formulação inequívoca, amplamente partilhada e generalizadamente percebida como aceitável e justa. Na realidade, como é usual, presta-se a múltiplas leituras e interpretações e é aplicado de forma diferente. Coloca facilmente os que defendem o direito à autodeterminação nacional, ou dos povos, a sustentar esse direito num caso e, noutro caso fundamentalmente similar, a negar o mesmo, entrando em contradição com os seus próprios argumentos.
Saindo do plano dos princípios para o mundo real, não faltam também exemplos de grupos que se vêem, a si próprios, como um povo ou nação e não têm o seu próprio Estado soberano, podendo queixar-se, com maior ou menor fundamento, de injustiça histórica e de viverem sob opressão. Mas também não falta quem lhes negue tais características e a opressão, desde logo nos Estados dos quais estes se pretendem emancipar. Na União Europeia, a Catalunha e a Escócia são os casos mais evidentes dessa reivindicação política.
Mas o mundo está cheio de casos onde é invocado, com mais ou menos fundamento, o direito à autodeterminação. Na União Europeia, para além dos exemplos já mencionados, há ainda o País Basco em Espanha, a Córsega, em França, a Flandres na Bélgica, etc. com pretensões de alguma forma similares. Fora desta, o número aumenta substancialmente: Quebeque no Canadá, Curdistão na Turquia, Iraque, Síria e Irão; Chechénia e Daguestão na Rússia; Xinjiang e Tibete na China, entre muitos outros mais ou menos conhecidos.
3. O direito de autodeterminação pode ser definido como um direito que dá a um grupo com características nacionais, ou a um povo, um direito de autogoverno, e também, caso seja essa a sua vontade, o direito de formar o seu próprio Estado soberano. Nesta última vertente — que é a mais contestada —, é uma ideia política dos últimos dois séculos ou dois séculos e meio. Na sua origem, que é europeia, está ligada às concepções modernas de nação e de nacionalismo, mas o seu entendimento tem evoluído ao longo do tempo.
Numa primeira fase, grosso modo do século XIX até aos anos 1920, esse ideário esteve em expansão. No plano internacional, um proponente maior foi o presidente norte-americano, Woodrow Wilson, no final da I Guerra Mundial. Como resultado, na Europa os antigos Impérios Austro-Húngaro, Otomano e da Rússia dos czares deram origem a múltiplos Estados no Centro e Leste europeu. Numa segunda fase, após a II Guerra Mundial, o princípio da autodeterminação interligou-se com o princípio da descolonização.
Entre os anos 1950 e 1970, a ênfase passou para o direito dos povos colonizados terem o seu próprio Estado soberano. Nesse período, as pretensões de autodeterminação nacional, à maneira da primeira fase da nação e nacionalismo europeus, foram congeladas pela lógica da Guerra-Fria. Após o final da Guerra-Fria e a desintegração da União Soviética, o problema da autodeterminação nacional ressurgiu. As pretensões de autodeterminação e nacionalistas congeladas pela Guerra-Fria (re) emergiram, seja de forma pacífica — no caso da Checoslováquia, que se dividiu em República Checa e Eslováquia — seja violenta, como ocorreu no caso da Jugoslávia que se desintegrou nos anos 1990, originando a Eslovénia, a Croácia, a Bósnia, o Kosovo, a Sérvia e a Macedónia do Norte. Mas no mundo actual, cheio de tensões, ninguém parece querer casos como estes, pois são sempre conflituais.
4. A Catalunha tem, ou não, direito à autodeterminação e à formação de um Estado soberano?
Para simplificar a análise vamos admitir que sim, embora o assunto seja obviamente controverso e susceptível de argumentação contrária, como são todos estes casos. Todavia, é um erro comum de análise achar-se que o direito de autodeterminação resolveria o problema, sem mais. Não resolve.
No plano internacional, o problema mais complexo para a Catalunha — como para qualquer outro povo na mesma situação — vem a seguir. Invocar o direito à autodeterminação não lhe garante o reconhecimento internacional como Estado soberano. Nem lhe garante também a integração na União Europeia. É necessário aqui notar que o reconhecimento de um novo Estado cabe aos restantes Estados já existentes na comunidade internacional. Embora existam requisitos previstos no Direito Internacional, na prática o reconhecimento é uma decisão política dos Estados já existentes, que podem aceitar, ou não, uma nova entidade estadual.
A ausência de reconhecimento internacional generalizado é um obstáculo poderoso. Impede, por exemplo, de participar em organizações internacionais, celebrar tratados internacionais formais, etc., o que traz grandes prejuízos políticos e económicos. No caso de a Catalunha proclamar a independência sem o reconhecimento da Espanha ficaria, provavelmente, num limbo como o Kosovo, que nem membro das Nações Unidas consegue ser. Grandes potências que teoricamente poderiam apoiar a independência da Catalunha — é o caso da Rússia ou da China —, na prática não o fariam. Não têm certamente vontade de criar precedentes contra si próprias, que alimentariam apoios externos aos seus próprios movimentos independentistas, como na Chechénia e Daguestão (Rússia) ou no Xinjiang no Tibete (China). Esta última tem ainda o problema das reivindicações de Hong Kong. Ao mesmo tempo, a Espanha, mesmo sem a Catalunha, continuaria a ter um peso político e económico maior do que esta, o que levaria muitos outros Estados a não a reconhecerem.
5. Pelo que já foi explicado, percebe-se que o princípio da autodeterminação nacional, ou autodeterminação dos povos, não vale grande coisa se não tiver forte apoio internacional — o exemplo dos curdos, com os seus contornos específicos, mostra bem isso. É irrealista pensar-se que uma Catalunha independente, contra a vontade de Espanha, possa ter esse apoio. Não seria membro da União Europeia num futuro discernível. Enfrentaria, tudo indica, obstáculos políticos e jurídicos inultrapassáveis. A oposição de Espanha, só por si, bloquearia as suas pretensões de adesão — a Espanha continuaria membro, a Catalunha teria de ir para a fila dos candidatos.
Mas há mais razões para o fechar da porta de acesso ao mundo dos Estados independentes e da União Europeia. Muitos teriam o problema de um precedente, o qual poderia ser usado contra si. Se há um direito de autodeterminação nacional reconhecido à Catalunha, então também teria de existir no País Basco, na Escócia, na Flandres, na Córsega, na Transilvânia, no Tirol do Sul, ou noutros territórios onde certas populações se (auto) identificam como um povo ou nação diferente — o precedente estava criado.
Podemos falar em hipocrisia europeia, claro, ou numa cínica realpolitik. Todavia, por mais simpatias que existam com a causa da Catalunha e até uma teórica vontade de a acolher na União, na prática faltará sempre o consenso europeu e os referidos interesses prevalecerão. Assim, o maior problema para a Catalunha nem é declarar a sua independência, o que até já fez fugazmente no passado, e poderá voltar a fazer contra a vontade do Estado espanhol. É ser, ao mesmo tempo, independente e manter um elevado bem-estar.
Para isso depende, de forma crucial, do reconhecimento internacional e da integração europeia, o que lhe escapa. A ironia histórica é que essa via teria sido mais fácil no passado, em economias menos integradas e interdependentes e onde a simpatia internacional por uma Catalunha republicana e democrática contrastava com a má imagem de uma Espanha franquista e opressora. Hoje a realidade é outra, numa Europa pós-nacional, integrada e democrática da qual a Espanha é parte. E no mundo, as grandes potências não têm interesse genuíno no princípio da autodeterminação nacional das quais, elas próprias, sofreriam as consequências se fossem coerentes com o mesmo.
Investigador do IPRI-NOVA