A poesia da arquitectura moral no Doclisboa
Com Years of Construction e A New Environment, o Doclisboa abre as portas ao olhar do cinema sobre a arquitectura como expressão do tempo.
Toda a gente conhecerá o célebre single dos Orchestral Manoeuvres in the Dark, Souvenir, um êxito global de 1981. O que já nem toda a gente se lembrará é que Souvenir que fazia parte de um álbum chamado Architecture and Morality – título retirado a um livro homónimo do historiador da arquitectura inglês David Watkin, Moralidade e Arquitectura. Isto vem a propósito de dois filmes no programa 2019 do Doclisboa que falam do aspecto social e moral da arquitectura.
De um lado, o pensamento de um outro historiador e crítico da arquitectura, o alemão Heinrich Klotz (1935-1999), tal como recordado por Christian Haardt em A New Environment, apresentado na Competição Internacional (repete domingo, dia 20, às 11h no cinema São Jorge). Do outro, o trabalho de reconstrução de uma ala do museu Kunsthalle Mannheim, filmado ao longo de cinco anos por Heinz Emigholz em Years of Construction/Baujahre Kunsthalle Mannheim 2013-2018, mostrado na secção Riscos.
Em comum, a visão sobre o modo como a arquitectura se inscreve no contexto urbano e temporal da sociedade em que existe. Emigholz, veterano artista multimédia e cineasta na fronteira do cinema experimental e do slow cinema, cuja obra tem sido regularmente acompanhada nos festivais portugueses, inclui Years of Construction numa série de retratos arquitectónicos iniciados na década de 1990, filmados com som directo pós-produzido e sem diálogos nem narração, deixando os enquadramentos e os espaços falarem por si. Como muito do seu cinema, é um filme plácido, confortável onde o espectador se deixa embalar pela precisa organização de imagens.
Em Years of Construction, é o tempo que interessa e o modo como ele trabalha sobre os edifícios e sobre as obras: desde o esvaziamento da antiga estrutura à abertura ao público do novo edifício, Emigholz filma sempre o que rodeia o estaleiro e o modo como ele se inscreve ao longo do tempo na zona. O seu foco é a interligação entre este novo edifício, moderno, angular e geométrico, e os edifícios e parques históricos à sua volta: é a arquitectura como parte integrante da cidade que aqui se mostra, e o modo como ela pode (re)construir (ou destruir) um centro histórico.
Essa interligação entre épocas, no fundo esse contexto, é o que está no coração do pensamento de Heinrich Klotz, figura central da academia na Alemanha do pós-guerra. Ele próprio aluno do Centro de Arte e Media do qual Klotz foi o fundador e primeiro director em 1989, Christian Haardt recorre em A New Environment exclusivamente a imagens e sons de arquivo (quer dos arquivos da família de Klotz, quer de entrevistas e programas radiofónicos ou televisivos) para desenhar uma introdução a esse pensamento: à ideia da arquitectura na Alemanha do pós-guerra como uma busca de uma identidade perdida na sequência do horror nazi.
Klotz criticava a arquitectura moderna não pelo que ela era em si mas pelo modo como o seu puro funcionalismo a corrompia, apagando traços de memória e de história. Se no pós-Segunda Guerra Mundial esse funcionalismo era prático – era necessário criar espaços de habitação depressa – em breve ele tornou as cidades frias, igualitárias, descentralizadas, levando os seus habitantes a procurarem na reconstrução ou na recriação de edifícios e arquitecturas históricas um passado artificial descontextualizado. O crítico e historiador compreendia esse impulso ao mesmo tempo que estava bem ciente dos seus riscos, e via o kitsch como um modo de individualizar e recontextualizar esse funcionalismo.
Enquanto filme, A New Environment limita-se a ser um exercício aplicado de montagem de arquivos, mas esse apagamento é apropriado perante a grandeza do pensamento de Heinrich Klotz que ele transmite inteligentemente.