Jaime Macuane: “Temos uma combinação de factores para haver um conflito em Moçambique”
Para o analista político moçambicano, a Renamo tinha muitas expectativas em relação a esta eleição e não vai aceitar de ânimo leve a vitória em toda a linha da Frelimo. “Houve muitas histórias que põem em causa a justeza, a transparência e a liberdade destas eleições”, explica.
Politólogo da Universidade Eduardo Mondlane, habitual comentador político na televisão, José Jaime Macuane teme pelas consequências de uma eleição que podia ter servido para consolidar a democracia moçambicana, mas em que se perdeu uma grande oportunidade para isto acontecer. E agora “parece que a Renamo não vai estar disposta a aceitar estes resultados pacificamente”. Está previsto que os resultados sejam anunciados esta sexta-feira.
As contabilizações feitas pela sociedade civil dão conta de uma vitória arrasadora da Frelimo em todo o país nas eleições do dia 15. O que pode isto provocar?
O que pode vir a provocar alguma coisa não é a vitória, mas a forma como alcançou a vitória. O que resta neste momento esclarecer é como foi conseguida a vitória da Frelimo: se foi pela via de eleições livres, justas e transparentes. Os sinais que existem é que há algumas manchas neste processo, ficando por definir a amplitude dessas manchas e em que medida é que são um factor para esses resultados serem arrasadores. Pelos sinais até agora emitidos e pelas mensagens que correm nas redes sociais, parece que a Renamo não vai estar disposta a aceitar esses resultados pacificamente. E se ela não o faz, isso vai ter consequências e não são boas.
A confirmarem-se os números, com uma vitória de Filipe Nyusi acima dos 70%, só há um resultado na história das eleições presidenciais moçambicanas que é a vitória de Armando Guebuza, com 75%.
Há vários factores que diferenciam o contexto da eleição do Presidente Guebuza em 2009 e este. O Presidente Guebuza era um líder dentro da Frelimo que, embora tivesse os seus detractores, não os tinha tanto como parece ter o Presidente Nyusi. Nem com a força que Nyusi tem dentro do partido. Segundo factor é que, na altura, Guebuza concorreu contra o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, que era um líder histórico. Em terceiro lugar, o nível de descontentamento na altura não estava ao nível de agora, hoje é muito mais alto. A par disto, a Renamo estava extremamente fragilizada. A situação agora é diferente: temos um líder na Frelimo [Ossufo Momade] que é contestado dentro e fora do partido do governo, também temos um líder da Renamo contestado dentro do seu partido, mas temos um alto nível de descontentamento, o que tornam estes números da votação e os de 2009 bastante diferentes.
É preciso realçar outro factor: não sei se o nível de sofisticação da observação eleitoral estava ao nível do que está agora, mas o facto é que nestas eleições a quantidade de irregularidades expostas foi muito maior, tanto em quantidade como em gravidade. Fica por apurar se essas irregularidades são tão graves como parecem à primeira vista e em que medida vão manchar a credibilidade dos resultados. Uma das coisas que saltou à vista foi a questão do voto especial. Como o nome sugere, é feito em condições de excepcionalidade, quando ultrapassa uma certa fasquia em algumas mesas, quando supera os 50% de votantes inscritos numa mesa, deixa de ser especial, aproxima-se do voto normal. A esta altura, dou o benefício da dúvida, é possível que exista alguma explicação racional e aceitável e que os concorrentes a estas eleições aceitem essa explicação. Mas não parece que a Renamo esteja propensa a aceitar essa explicação.
Os resultados eleitorais anteriores mostravam que a Renamo tem uma forte implantação no centro e norte do país, se se vier a comprovar que perdeu as dez províncias, a explicação só pode ser pela manipulação de resultados?
Houve alguns problemas logo no recenseamento. Fora o caso de Gaza, que foi tão evidente, ninguém fez uma análise profunda até agora para determinar que impacto teve o nível de recenseamento nos diversos círculos eleitorais das províncias. Uma análise muito por alto, feita por observadores eleitorais, indica que algumas províncias, principalmente onde a oposição é historicamente forte, tinham tido níveis de recenseamento muito abaixo dos 100% e relativamente mais baixo que nas outras províncias onde a oposição tem menos espaço. A confirmar-se, isto quer dizer que a oposição chegou a estas eleições com menos eleitores. Depois, alguma observação eleitoral em províncias como Tete, Zambézia e Nampula sofreu restrições muito sérias. E, no que concerne ao processo político mais amplo, o líder da Renamo, que me lembre, não fez campanha em Sofala e, ao mesmo tempo, está a sofrer uma contestação interna. O que poderá ter tido algum impacto em termos de mobilização dos seus correligionários para fazerem campanha e dinamizar as bases.
Mas aí Ossufo Momade poderia perder votos para Filipe Nyusi e, mesmo assim, o partido manter uma votação alta nas eleições provinciais.
Depende. No caso da Zambézia, o Manuel de Araújo foi um candidato de última hora, exigido pelas bases para cabeça-de-lista da eleição provincial. Em Sofala, houve um conflito sobre quem seria o delegado político legítimo e até houve uma eleição paralela. Isto indicia que as bases da Renamo não estão coesas em relação aos candidatos. A Renamo foi para esta eleição com divisões internas e não sei até que ponto os candidatos que estavam nas listas representavam um nível de consenso ou foram eleitos democraticamente dentro das estruturas internas. Por causa disso, não me parece que seja um dado adquirido que o facto de serem eleições locais gozem de maior apoio das bases.
Moçambique tem um histórico de tensão pós-eleitoral. Em 2012, Afonso Dhlakama voltou para a mata. Em Agosto deste ano, um novo acordo de paz foi assinado que não é reconhecido por todos dentro da Renamo. Uma derrota do partido em toda a linha poderá provocar o regresso às armas?
O que já está a transpirar nos media, citando um comunicado do partido, é que a Renamo deixou de acompanhar o processo de contagem dos votos. Historicamente, quando há um problema na contagem dos votos, a Renamo recorre, quase sempre perde, e depois parte para uma suposta negociação, que não dá em nada. Isto acontece pelo menos desde as eleições de 1999. O próprio modelo de descentralização que temos agora, com a eleição dos governadores provinciais, vem deste processo de negociação. O passo que deu agora, a continuar este padrão, a Renamo não vai ter nada, porque quando as instituições começarem a processar algumas reivindicações, vai entrar aquele legalismo de sempre: pode ter havido irregularidades, mas como não houve queixa nas instâncias adequadas, não há matéria para ser julgada. Consequentemente, os resultados serão confirmados. Significa isto que a Renamo terá uma minoria mais encolhida na Assembleia da República, vai ter minorias nas assembleias provinciais e não vai ter nenhum governador. A Renamo vai aceitar este resultado? Ela que investiu tanto neste pacote de descentralização, com a esperança de que governaria as províncias onde teve maioria. Isto é muito crítico sob o ponto de vista da sobrevivência da Renamo. Num contexto em que não parece haver da Frelimo – que está eufórica com esta vitória e assertiva quanto ao seu poder e dominância – propensão para aceitar um acordo político-partidário, temos uma combinação de factores para haver um conflito em Moçambique.
Se todos esses ilícitos de que há evidências, provas, indícios se confirmarem, não quer dizer que a Frelimo exagerou?
Para quem na Frelimo não está por dentro de como foi preparada a eleição, deve estar até surpreendido com esta vitória (risos). É um resultado inusitado, tendo em conta o contexto do país, com uma crise económica grave que naturalmente teve impacto no desempenho do Governo nestes últimos três anos. Intuitivamente, dir-se-ia que o Governo seria penalizado, mas não foi o que aconteceu, a julgar pelos números. E mesmo nas zonas urbanas, onde, supostamente, existe um eleitor mais sofisticado, mais analítico e que sofre mais impacto da crise económica. É um resultado surpreendente que é preciso saber se vai ser aceite por todos: o que mais conta não é a magnitude desta vitória, mas ser aceite como legítima.
Sendo esta a primeira eleição em que os moçambicanos podem escolher os governadores das dez províncias, perdeu-se uma oportunidade de consolidar a democracia em Moçambique?
Muito mais do que a eleição dos governadores, o golpe mais sério à democracia é a questão da transparência das eleições. Independentemente do modelo que temos, o mais importante é que as eleições sejam livres, justas e transparentes e houve muitas histórias que põem em causa a justeza, a transparência e a liberdade destas eleições. A violência, as restrições à observação eleitoral, lançam uma sombra preocupante sobre as eleições e é aí que está o golpe mais sério à democracia. A eleição dos governadores tem um valor simbólico muito alto. As pessoas que votam sistematicamente num partido – que é grande, a Renamo é grande, tem estado historicamente entre os 30% a 40% e já esteve próxima dos 50% em 1999 –, naturalmente que esperam um dia ver um partido desta grandeza no poder. E esta era uma oportunidade muito grande para isto acontecer.
O PÚBLICO viajou a convite da Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP) e do Centro de Estudos Internacionais (CEI/ISCTE), no âmbito do projecto As ONG no Desenvolvimento e na Cidadania, financiado pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua