Criminalizar consumo na rua é um “passo atrás na política de drogas de Portugal”
Harm Reduction International, ONG que luta há décadas pela defesa dos direitos dos consumidores de drogas, condena declarações de Rui Moreira.
As declarações de Rui Moreira chegaram à Harm Reduction International (HRI), organização internacional de redução de riscos e políticas para as drogas, e deixaram a ONG alarmada. O presidente da Câmara do Porto defendeu numa Assembleia Municipal no início deste mês que, “em alguns locais, seja criminalizado o consumo ao ar livre”, uma posição bem diferente daquela que havia tido em Abril perante uma plateia internacional. Esta mudança, lamenta a HRI, representa “um significativo passo atrás na política de drogas de Portugal”.
Num comunicado publicado online, a ONG recorda o caminho feito por Portugal, que em 2001 deixou de sancionar o uso e posse de drogas, adoptando uma abordagem centrada na saúde. Política com vantagens evidentes: “Desde que a descriminalização entrou em vigor, as mortes por overdose e infecções por HIV entre pessoas que usam drogas em Portugal caíram significativamente, assim como a prisão por delitos relacionados a drogas”, diz, deixando um aviso: “A reintrodução de sanções penais pelo uso de drogas corre o risco de reverter essas tendências positivas.”
Naomi Burke-Shyne, directora executiva da Harm Reduction International, considera “extremamente decepcionante” que a autarquia esteja a defender a criminalização: “A evidência indica esmagadoramente que a criminalização é ineficaz na redução do uso de drogas, e só serve para colocar as pessoas e as comunidades em maior risco de saúde e danos sociais.”
Essa havia sido, aliás, a posição defendida por diversos especialistas e estudiosos portugueses que, questionados pelo PÚBLICO, foram unânimes em considerar que o “alarme social” e a “repressão”, por si sós, apenas serviriam para dilatar o problema.
No fim de Abril deste ano, Rui Moreira foi aplaudido na 26.ª Conferência Internacional de Redução de Riscos, organizada pela HRI e pela Agência Piaget para o Desenvolvimento (APDES), quando anunciou que o município ia apoiar a “criação de uma unidade móvel de consumo assistido como mais uma reposta de saúde pública”, dizendo que aquele não poderia ser um investimento apenas camarário mas também do Governo.
“Não é uma decisão fácil, não sou mais popular do que há cinco minutos. Mas tudo bem, é parte do meu trabalho”, afirmou. Rui Moreira quis partilhar com a audiência – onde estavam, por exemplo, a alta-comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, ou o ex-Presidente da República e membro da Global Comission on Drug Policy, Jorge Sampaio, – quão “orgulhoso” estava por este já não ser um problema do Ministério da Justiça. “Há vinte anos mudou e agora tem a ver com o Ministério da Saúde”, disse, apelando até a convidados internacionais que vivessem em países onde essa mudança ainda não tivesse ocorrido para seguirem o exemplo português. “É vital”, apontou.
Surpreendida com a alteração do discurso do presidente da autarquia, Naomi Burke-Shyne disse ser “preocupante” a afirmação de Moreira, que antes defendia uma abordagem centrada na saúde. “A conveniência política não deve ultrapassar a segurança e a segurança das pessoas que usam drogas no Porto”, apontou, recordando que a descriminalização do uso de drogas é recomendada pela Missão Conjunta das Nações Unidas sobre VIH, a Organização Mundial da Saúde e a Rede Internacional de Pessoas que Usam Drogas. Contactada pelo PÚBLICO, a Câmara do Porto não respondeu.
Como o PÚBLICO noticiou no início de Setembro, a autarquia já “guardou” uma verba – 400 mil euros – para avançar com as salas de consumo assistido. A ideia de criação destes espaços havia sido aprovada em Assembleia Municipal em Junho, sem obstáculos políticos. Com o desmantelamento do bairro do Aleixo, em Maio, e o aumento da visibilidade do consumo e tráfico de droga, a Câmara do Porto pediu um reforço dos meios policiais. O hemiciclo foi unânime em reconhecer a existência de um problema, mas mostrou-se dividido na hora de votar a solução.
Rui Moreira tinha admitido “pisar o risco”, se fosse necessário, e instalar câmaras de videovigilância até nas entradas das habitações sociais. Não o fez. Mas investiu na compra de 110 novas câmaras para o seu Centro de Gestão Integrada, a partir do qual se controla o tráfego na cidade, e vai instalá-las em diversas ruas, também junto a dois dos bairros onde tem havido mais relatos de problemas: a Pasteleira Nova e o Pinheiro Torres. Sem poderes para fazer um uso policial desses aparelhos, Moreira acenou ao Ministério da Administração Interna e disse estar disponível para colaborar. “Estamos prontos a ceder [as câmaras]. Está à distância de um clique e custa zero ao Estado português.”