“Olham para nós mas parecem que não nos vêem. Somos transparentes”
Dois anos depois dos incêndios de 15 de Outubro ainda há 40 famílias à espera de casa. E em dez casos, todos em Castelo de Paiva, as obras ainda nem começaram. Há justificação formal para tudo. Mas quem está há 730 dias a contemplar as mesmas ruínas, e a olhar de frente a noite que quer esquecer, tem dificuldades em aceitar.
Na noite de 15 de Outubro de 2017 Albina Araújo fartou-se de chorar. Gritou, esbracejou, barafustou com o agente da GNR que a obrigou a sair da casa onde nasceu há 59 anos, no lugar de Gaído, em Castelo de Paiva. O incêndio entrou-lhe porta adentro, pouco depois de a obrigarem a sair. Ela salvou-se, o marido, que tinha ido a um funeral, também. Mas a casa ficou reduzida a cinzas, com apenas alguns muros em pé. Bina, como gosta que a chamem, tem chorado todos os dias desde então. Quando regressou a Gaído uns dias depois do incêndio confirmou que ficara sem nada. Pediu na câmara para a deixarem viver na escola primária onde aprendeu a ler, fechada há anos, e ficava defronte à casa que era agora uma ruína. Na primeira noite que lá dormiu, escreveu no quadro de ardósia que está na parede onde encostou a cabeceira da cama: “Não choro pelo que perdi, luto pelo que tenho.” Tem sido fiel a essas palavras. Há 730 dias.
Bina perdeu tudo. Ficou sem casa, agravou a depressão e a ansiedade que a levaram a abandonar a vida na cidade da Feira e a fizeram regressar a Gaído, há quase dez anos. Mas ainda tem a mãe viva. “E a minha mãe é tudo. Tenho um filho, tenho um marido. Mas mãe é mãe, e não descanso enquanto não lhe mostrar a casa onde ela nos criou. Eu luto pela minha mãe”, insiste.
A mãe de Albina faz 98 anos dentro de duas semanas. E ainda não sabe que a casa onde deu à luz oito filhos, e enfrentou a ira de um marido alcoólico que a violentava, está reduzida a cinzas. Por altura dos incêndios, as filhas começaram por achar que Ludovina não aguentaria a notícia. Agora enredam-se a perpetuar a mentira, e fica cada vez mais difícil explicar porque é que às sextas-feiras, a noite que compete à filha Albina ir dormir com a mãe, esta não a leva, como sempre fazia, para a casa de Gaído. É a mentira que continua a contar a Ludovina que a faz chorar, compulsivamente, todos os dias. “Só quero que comecem as obras. Sonho com isso, tenho pesadelos com isso. Bastava ver aqui uma máquina, e eu trazia logo a minha mãe. Inventava qualquer coisa, que uma parede da casa ruiu, mas que a estávamos a pôr muito bonita. Qualquer coisa. Mas não há maneira de as obras começarem, e ninguém nos explica porquê”, reclama.
O pior dia do ano
A dimensão dos incêndios de 15 de Outubro foi avassaladora. Ainda o país não se tinha reposto da tragédia de Pedrógão, em Junho, onde morreram 65 pessoas, e dois meses depois o fogo consumiu mais de 290 mil hectares, varreu 38 municípios, atingiu 490 empresas, destruiu totalmente cerca de 400 casas (mas foram afectadas mais de mil).
A decisão de se criar um fundo – o Revita – para gerir os donativos não se repetiu aqui. As verbas vieram do Orçamento do Estado, e o Governo destinou 60 milhões de euros para acudir só na recuperação das casas. Já aplicou 53 milhões de euros e, das 353 reconstruções totais (com verbas superiores a 25 mil euros) na região Centro, falta terminar as obras em 30 casas, todas em diferentes fases de execução. Na região Norte a reconstrução total é apenas em dez casas, todas em Castelo de Paiva. As obras ainda não arrancaram em nenhuma.
Cada casa é um caso, cada vítima tem uma história. Carlos Osório perdeu a casa no incêndio, no mesmo ano em que perdeu os pais. Continua a morar e a trabalhar em Castelo de Paiva, está a pagar uma renda, enquanto espera que lhe reconstruam a casa, não sabe quando. Só sabe que está tudo atrasado. Também Albina Araújo e António Silva não fazem a mínima ideia de quando irão as obras arrancar. “Eu telefono sempre a perguntar. Ninguém consegue dizer”, conta Albina. António tem a certeza de que com a sua força de vontade e a ajuda de mais alguns amigos já tinha conseguido por a casa de pé, habitável. “Mas não me deixam. Mandam-me esperar.” Também não o deixam fazer o que lhe apetece na escola – embora ambos já tenham feito muito. Por exemplo, abrirem um portão para terem onde arrumar o carro. Também já passaram por sustos na escola. Já viram o telhado cair – mesmo por cima da cama onde dorme o filho de Albina, José Amorim, de 30 anos, sempre que vem a casa. A Câmara de Castelo de Paiva veio prontamente arranjar.
O “quarto” de Albina e António está quase na mesma, desde há dois anos: o quadro de ardósia continua com as mesmas frases, agora com giz mais esbatido; mas as traseiras do roupeiro, que fazem, afinal, de parede do quarto, ganharam uma cortina nova, azul forte. “As traseiras do roupeiro são muito escuras. É só mais tristeza que me traz. Às vezes dizem-me que se não mostrasse a escola tão arranjadinha me davam a minha casa mais rápido. Mas ser pobre não é ser porco.” Albina recebe rendimento mínimo de inserção – não consegue trabalhar, passa os dias em consultas e terapias ou a fazer biscates para amealhar algum dinheiro. Quer ajudar o filho, de 30 anos, a arranjar os dentes, e para isso pinta cabaças, transforma em vasos o que consegue imaginar (até botas velhas do marido), faz arranjos decorativos com caroços de abacate. “Sou uma lutadora. Sempre fui. Não peço a ninguém que me traga o peixe, mas preciso que alguém me dê a cana para eu poder ir pescar”, admite.
O episódio mais recente do extenso rol de amarguras que tem para contar foi quando esteve, de novo, a pedir ajuda na Câmara de Castelo de Paiva. “Fui lá pedir autorização para me deixarem fazer uns lanches, umas bifanas, umas febras para vender aqui no pátio da escola. Não tenho dúvidas que conseguíamos fazer alguma coisa”, relata. Disseram-lhe “Vamos ver, vamos ver... depois dizemos alguma coisa”. “Ninguém disse nada, até hoje. O que mais me custa é a gente, no meio disto tudo, se sentir transparente. São todos meus amigos, simpáticos, recebo muito carinho e dão-me palmadinhas nas costas. Mas sinto que estão a olhar sem ver. Nem sabem se a blusa que trago no corpo é branca ou preta. Dói muito. Olham para nós, parece que não nos vêem. Somos transparentes.”