Clima: “É nas cidades que a batalha se vai ganhar ou perder”
A sombra de Trump pairou todo o dia em Copenhaga, onde os autarcas reclamam estar na linha da frente do combate às alterações climáticas. Mas só com as cidades não vamos lá, alertou António Guterres.
Al Gore está irritado. Anda há tantos anos a falar de alterações climáticas e só agora, já quase no ponto de não-retorno, é que parecem começar a dar-lhe ouvidos. “Esta crise é muito pior do que as pessoas imaginam e está a piorar muito mais do que as pessoas imaginam”, diz, aos berros, pouco depois de subir ao palco.
No primeiro dia a sério do Fórum Mundial de Autarcas C40, uma aliança de cidades contra as alterações climáticas, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos da América foi o último orador de uma conferência onde a sombra de Donald Trump pairou ininterruptamente, quase sempre de forma implícita.
Afirmou-se inúmeras vezes, e repetiram-se outras tantas, que os autarcas estão a fazer mais pelo planeta do que os governos nacionais e as instituições supranacionais. Al Gore não veio para desmentir. Pelo contrário, fez mesmo um arriscado exercício de futurismo ao declarar que as gerações que hão-de nascer vão olhar para trás e dizer, espantadas, que foi “em Copenhaga, na Dinamarca, em Outubro de 2019, que os autarcas decidiram resolver esta crise”.
Esta frase optimista, que concluiu a sua intervenção e pôs a plateia de pé com aplausos entusiásticos pela primeira vez, foi o contraponto aos dez minutos anteriores, em que desfiou as potenciais consequências catastróficas de um exagerado aquecimento global e ainda teve tempo para criticar o Reino Unido pelo Brexit, que considerou ser “um tiro nos dois pés”.
“Quando comecei estas apresentações, ia buscar exemplos dos últimos cinco ou dez anos. Agora vou buscá-los à semana passada ou a ontem”, disse Al Gore, referindo o furacão Dorian, que praticamente destruiu uma ilha das Baamas, o furacão Maria, que devastou Porto Rico há dois anos, e o super-tufão Hagibis, que se encaminha para o Japão. A maior frequência e potência destes fenómenos extremos, acusou Al Gore, é culpa dos humanos, que deixaram que a temperatura da atmosfera e dos oceanos crescesse demasiado.
E daí desenrola-se um novelo de problemas: o número de refugiados climáticos vai disparar significativamente, os governos terão problemas em lidar com isso, a desigualdade atingirá novos patamares. “Isto ameaça a democracia e o capitalismo”, avisou Al Gore. “No mundo da política é muito difícil olhar para lá do horizonte”, reconheceu, dizendo ao mesmo tempo que “a vontade política é um recurso renovável” e que “ainda vamos a tempo” de reverter este estado de coisas.
Um plano sem Washington
“Nós sabemos, e vocês sabem, que as palavras bonitas têm de ser transformadas em acções concretas e é aí que as cidades estão na linha da frente”, disse Connie Hedegaard, ex-comissária europeia do clima, logo de manhã, na sessão de abertura.
A ideia seria ecoada ao longo do dia de diferentes maneiras. António Guterres, secretário-geral da ONU, que esta sexta-feira falará perante o plenário de autarcas, disse em conferência de imprensa que “é nas cidades que a batalha se vai ganhar ou perder”. Mas também alertou, contrariando algum entusiasmo excessivo que se observou na conferência, que “as cidades não têm poder para decidir tudo” e que “os países mais poluidores ainda não se comprometeram” a eliminar as emissões poluentes até 2050, como a maioria já fez.
Ainda assim, afirmou, as cidades “têm muita margem para agir” e “a opinião pública está a pressionar cada vez mais, movendo-se mais depressa que os governos”, o que tem de servir de incentivo para que os autarcas se mexam.
Foi o que fez um conjunto de mayors americanos. “Os Estados Unidos têm um plano, ele apenas não foi escrito por Washington”, disse Michael Bloomberg, ex-presidente da câmara de Nova Iorque e um dos principais financiadores da C40, que convenceu oito autarcas de grandes cidades americanas a vir a Copenhaga explicar o que estão a fazer nas suas terras. A Fundação Bloomberg acaba de publicar um manual com recomendações para melhorar a eficiência ambiental das cidades e, segundo o filantropo, “se todas as cem maiores cidades dos Estados Unidos adoptassem essas medidas, em 2025 haveria uma redução de 28,5% nas emissões do país”.
“Mesmo que não tenhamos apoio do governo, isso não é desculpa para não fazermos nada”, afirmou ainda Bloomberg, na sessão da manhã, onde Mark Watts, director-executivo da C40, exibiu as fotografias de Trump e Bolsonaro quando se referiu a governos negacionistas. Houve um burburinho a percorrer a sala. Mais tarde, quando a autarca de Seattle disse que “o governo federal afastou-se deste assunto e está até a tomar decisões nefastas”, ou quando o autarca de Portland afirmou que “Trump virou as costas ao clima”, foram as palmas que irromperam.
O PÚBLICO viajou para Copenhaga a convite da Câmara Municipal de Lisboa
Notícia corrigida às 22h22: Número de autarcas corrigido para oito. Valor da redução de emissões alterado para 28,5%.