Coliving? Não precisamos de viver pior, muito obrigado
Não vivemos em Silicon Valley, não trabalhamos nos nossos portáteis e telemóveis sentados em puffs de todas as cores em amplas salas de estar enquanto partilhamos destinos de férias em tempo real com os nossos companheiros de casa, também eles profissionais de sucesso no ramo das tecnologias.
Coliving não é senão um anglicismo, areia para os olhos de quem connosco se senta à mesa do café quando lhes contamos as últimas novidades. Isto quando não há novidades nenhumas, antes pelo contrário, perdeu-se o emprego, o rendimento e, com uma mão atrás e outra à frente, famílias inteiras voltam para casa dos avós.
Coliving é um retrocesso social, é o regresso às casas sobrelotadas, é dormir no sofá ou no chão e agradecer ainda ter um tecto, é a falta de comida à mesa,
são tantas as bocas, é a ausência total de privacidade, irmãos, irmãs e pais a dormir todos juntos, é despirmo-nos à frente de toda a gente, a violação da intimidade, a pobreza, a vida da qual todos fogem.
Coliving é ter os pais na nossa casa, fruto da idade e da dependência, é a falta de dignidade e de espaço, é contar os dias pelas palhas do fardo e pedir desculpa, é esperar ansiosamente pelo fim da vida.
Coliving é não ter para onde ir fruto da especulação, do metro quadrado ao nível das grandes capitais e em nome do capital, é um remediar nem por isso temporário e daí o termo que em inglês soa sempre melhor, até parece moderno, até parece fino, e os amigos cheios de inveja nas suas grandes casas, sozinhos no eco dos salões e quartos sem ninguém com quem partilhar uma vida. Coitados...
Coitados de nós!
Praticamos o coliving há séculos. Desde sempre, aliás. E desde sempre almejamos o direito a uma habitação digna, de resto escrita na nossa Constituição. Diz o artigo 65.°: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.”
Todos, e sublinho todos, ergo todos os que puderem pagar a dita habitação, e se não puderem, paciência, todos ao molho e fé em Deus. E esqueçam os bonitos chavões da promoção da vida em comunidade, tão em voga junto de imobiliárias, arquitectos e engenheiros civis.
Não neguemos o óbvio: isto é um negócio, cabendo a estes agentes a tarefa de impingir pelo mesmo preço de uma habitação condigna para uma família a mesma habitação mas com quatro famílias lá dentro trancadas a sete chaves, cada uma no seu quarto sem querer saber dos espaços comuns enquanto fazem fila para cozinhar à vez, sem esquecer a espera para a casa de banho, pois claro.
Ah, e a piscina comum? Não é uma piscina, é uma banheira larga, mas na fotografia com uma grande angular não parecia.
E não, não vivemos em Silicon Valley, não trabalhamos nos nossos portáteis e telemóveis sentados em puffs de todas as cores em amplas salas de estar enquanto partilhamos destinos de férias em tempo real com os nossos companheiros de casa, também eles profissionais de sucesso no ramo das tecnologias.
Não, vivemos em Portugal com um ordenado verdadeiramente mínimo e igualmente precário, lutamos por direitos e continuamos a lutar por direitos, vivemos mal e continuamos a viver mal, não precisamos de viver pior, muito obrigado.