O salário dos professores: fact-checking

Depois da carga fiscal directa do IRS e do pagamento de outras obrigações, o que resta no bolso dos docentes?

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No recente Dia Mundial do Professor que coincidiu com o dia de “reflexão” para as eleições legislativas, a produção de títulos na comunicação social necessitou de encontrar temas que não chocassem com a atitude reflexiva, acabando por surgirem com destaque alguns “factos” sobre o salário dos professores portugueses e a sua disparidade entre base e topo de carreira, com base num estudo da rede europeia Eurydice. E foram apresentadas “conclusões” ou “evidências” que, como é infelizmente muitas vezes habitual nestes casos, se caracterizam por uma leitura pouco crítica do que, atendendo à fonte “oficial” e para mais internacional, se consideram acima de qualquer análise adicional.

E publicou-se que os professores portugueses “do 3.º ciclo” (já agora… será de todos porque a tabela salarial é comum) ganham 116% mais (acima do dobro) no topo do que na base da carreira, demorando 34 anos a chegar a essa remuneração máxima. Acerca disto, que nominalmente e no papel poderão parecer factos indesmentíveis, eu gostaria de acrescentar um pouco da “análise adicional” que sinto ter ficado por fazer.

1. Os dados de estudos internacionais sobre os salários e carreira dos professores, nomeadamente da OCDE ou da rede Eurydice, são feitos com base em dados fornecidos pelos organismos governamentais de cada país e correspondem aos dados nominais das tabelas legisladas. O valor acrescentado de tais estudos encontra-se na comparação entre as diferentes realidades nacionais, já se tendo tornado comum o uso da paridade dos diferentes poderes de compra. E poderia encontrar-se na comparação entre o que está previsto em termos nominais e os valores reais. No caso dos salários dos professores portugueses, em especial na última década, isso não foi feito, ignorando-se o acréscimo de carga fiscal e, em alguns casos, até se esquecendo a referência aos cortes realizados com a introdução da sobretaxa (não esquecendo que até 2018 se comparavam dados de um 10.º escalão onde não estava ninguém). Quanto à carreira, é evidente o apagamento dos efeitos do congelamento de parte do tempo de serviço prestado e dos mecanismos de travagem da progressão na carreira em três dos seus escalões.

2. Em termos de carreira, os 34 anos para ser atingido o topo (índice 370) é uma ficção completa, desafiando os autores do estudo ou os seus divulgadores a apresentarem quantos professores o atingiram em tal período de tempo ou, dos que estão ainda em exercício, que proporção o virá a conseguir. O tempo de serviço não recuperado e a existência de um sistema de quotas para a progressão em vários pontos da carreira inviabilizam que a larga maioria da classe docente chegue ao topo da carreira, estimando eu, sem uma rede internacional a apoiar-me o exercício futurológico, que serão menos do terço previsto no Estatuto que pretendia em 2007 criar a casta dos professores “titulares”.

3. No caso dos salários, é grave que os estudos se fiquem pelo copy-paste dos dados nominais e pela aplicação de fórmulas do Excel que agora até já estão incluídas nas janelinhas do programa. A diferença é muita e bastaria consultar as tabelas disponíveis em sites sindicais. Se consultarmos as tabelas salariais para 2019, verifica-se que entre o 1.º escalão (1518,63€) e o 10.º escalão (3364,63€) existe uma diferença de 1846€, o que equivale a uma diferença de 121,6% (o estudo da Eurydice usa os dados de 2018). Mas esses são valores nominais. Os valores reais, líquidos, são outros. Depois da carga fiscal directa do IRS e do pagamento de outras obrigações, o que resta no bolso dos docentes? E qual é o verdadeiro diferencial?

4. Um docente não casado, sem dependentes, no 1.º escalão, recebe em valor líquido 1133,37€ (menos quase 400€ do que o valor da tabela); no 10.º escalão, na mesma situação, receberá 1989,70€ (menos quase 1400€). São mais 856,33€. O que corresponde a um diferencial real de 75,5%. Numa outra situação, que se pode considerar até mais comum, um docente casado, dois titulares e dois dependentes, no 1.º escalão recebe, em termos líquidos, 1174,37€ (menos cerca de 340€); no 10.º escalão, 2006,70€ (menos quase 1350€). A diferença? 832,33€. O diferencial efectivo? 70,9%.

A diferença entre o valor real e o valor “mediático” com chancela de instituições oficiais internacionais é, sem exageros, “colossal”. No estudo e nas notícias, não sabemos como é nos outros países. É pena que continuemos a consumir informação assim.

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