Uma terra fora da campanha: “Ninguém quer saber de Portalegre. Acha isto normal?”
Por ano, o hospital distrital paga 5,5 milhões de euros na contratação de médicos que olham para o relógio ansiosos por partir para outro lugar. A taxa de ocupação no banco do hospital é de 138% e os doentes chegam a estar oito dias nos corredores.
A campanha eleitoral termina esta sexta-feira, mas os líderes dos partidos com assento parlamentar concorrentes às legislativas do próximo domingo não colocaram Portalegre nos seus itinerários. “Ninguém quer saber de Portalegre. Acha isto normal?”. A pergunta é de Jaime Azedo, presidente do conselho sub-regional de Portalegre da Ordem dos Médicos (OM). A presença das principais figuras políticas “estaria mais do que justificada, continua o dirigente da OM, enumerando as “enormes carências” de profissionais em todas as áreas: médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, assistentes e assistentes operacionais.
As especialidades base num hospital distrital (Medicina Interna, Cirurgia Geral, Pediatria, Obstetrícia e Ginecologia, Ortopedia e Anestesiologia) “têm médicos envelhecidos, deficitários e exaustos, e as suas actividades principalmente na urgência, são garantidas com recursos a prestadores de serviços, externos”, acentua o clínico. Em 2018 “foram feitas cerca de 200 mil horas em prestação de serviços na unidade de cuidados intensivos, no qual foram gastos 5,5 milhões de euros”. Na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, este mesmo tipo de encargos custou 4,5 milhões de euros, que baixaram substancialmente em Évora para 1,5 milhões de euros.
As soluções de outsourcing são as resultantes das características socioeconómicas de um distrito que não é atractivo do ponto de vista económico, social e cultural, frisa Jaime Azedo, realçando um outro dado: “Aos médicos do Serviço Nacional de Saúde que vêm para Portalegre pagam-lhes cerca de 15 ou 16 euros enquanto a um contratado a remuneração ultrapassa, consoante a especialidade, os 60 euros.”
O resultado reflecte-se numa má prestação dos serviços. Mas esta realidade arrasta consigo um outro problema. “A qualidade dos prestadores que não é a melhor”, refere Jaime Azedo, frisando que os doentes se “acumulam nos corredores” porque a taxa de ocupação do banco hospitalar é de 138%. “Chegam a estar oito dias nos corredores com luz e movimento e sem condições que as preservem quando necessitam de satisfazer as suas necessidades fisiológicas”, critica o dirigente da OM.
Um “pauzinho” incómodo
A comunidade norte alentejana não esconde a sua apreensão nem poupa nas críticas quando se pronuncia sobre os cuidados de saúde prestados na região. Rosa Silva, 51 anos, residente na vila do Crato, contou ao PÚBLICO o que se passou quando recorreu aos serviços de urgência do hospital distrital, José Maria Grande. Ao mastigar uma fatia de piza ficou com um pequeno fragmento de orégãos espetado na garganta, “um pauzinho pequenino”. Aconteceu à hora do jantar e o incómodo era tal que recorreu ao serviço de urgência. O médico que a observou deparou-se com uma situação insólita: “Como é que vou tirar o pauzinho se não tenho uma luz para ver a garganta?”, recorda Rosa Silva que diz ter ficado “aflita” quando o clínico lhe disse: “Olhe, se eu não conseguir tirar o pauzinho, tem de ir para Lisboa”.
Por fim, a contingência foi superada quando o médico se lembrou de utilizar a lanterna do telemóvel para, com uma pinça, “tirar o maldito pauzinho”.
A sua passagem pelo hospital noutras circunstâncias alimenta-lhe relatos de situações que realçam a escassez de médicos. “Temos de estar noites inteiras, sete e oito horas, até que alguém nos atenda no serviço de urgência”, tendo por companhia as pessoas acamadas nos corredores do hospital, onde Rosa Silva já teve familiares.
No concelho vizinho, em Alter do Chão, Diogo Carvão, 20 anos, também tem um caso para contar. Fez uma luxação num ombro por causa de uma brincadeira com touros. “Andei sete meses a caminhar para o Hospital de Portalegre para me dizerem que não era nada”. Deslocava o ombro e nos exames de raios X “não aparecia o problema”. Até que apareceu um médico que lhe detectou um problema raro num dos ligamentos, depois de ter realizado uma ressonância magnética, e entrou na saga de cirurgia atrás de cirurgia (cinco vezes, ao todo). Mas o que mais lhe custava era estar “seis e sete horas à espera cheio de dores”, até ser observado pelo médico ou pelo ortopedista.
“Nunca pensei que a saúde em Portugal estivesse neste estado”, refere ao PÚBLICO, descrevendo um episódio que o marcou. “Uma das vezes em que fui ao hospital estava lá uma senhora grávida e em vez de levarem a senhora para a sala de partos, mandaram-na esperar. Teve o bebé à porta das urgências.”
Depois da experiência que suportou ao longo de sete meses, interiorizou a ideia que ao entrar nas urgências do hospital de Portalegre “a gente não sabe para o que vai. Tive de repetir vezes sem conta a médicos diferentes a minha situação”.
Sandra Carvalho, 45 anos, residente no Crato, esperou cheia de dores ao longo de seis horas com um ombro partido até ser atendida. “E se dizemos que temos dores, por vezes, até somos ofendidas”. Experiências “muito más” que também afectaram Isabel Maria, de 49 anos. Foi de Alter do Chão ao hospital de Portalegre com a sua filha de 17 anos a queixar-se de fortes dores no peito. “Abalámos à meia-noite e eram três da madrugada e não aparecia médico nenhum.”
Quando foi atendida, a medicação prescrita não abrandava as dores. Apareceu, então, um médico de medicina geral que começou a dar-lhe medicação para as dores, mas não passava. “Está há cinco meses a colocar um comprimido debaixo da língua à espera de fazer uma prova de esforço e um electrocardiograma. O Hospital de Portalegre é para esquecer”, sintetiza Isabel Maria.
Há boas referências, mas...
Já Maria Joana Cabaça, 78 anos, diz que “só tem boas referências” do Hospital de Portalegre, onde foi “sempre bem tratada” embora reconheça que a opinião maioritária “é desfavorável” quanto ao modo como são prestados os cuidados médicos.
Alzira Calhas, 75 anos, partilha a mesma conclusão. O seu marido, que morreu na unidade hospitalar, “foi muito bem tratado por médicos e enfermeiras”. Mas não é alheia às queixas de outras pessoas sobre os elevados tempos de espera que suportam. O problema, refere, “é que o hospital tem muita gente que precisa de ser atendida e temos de andar sempre de um lado para o outro, mas é assim na província”.
Em nenhum dos depoimentos recolhidos pelo PÚBLICO foi questionada a prestação dos centros de saúde, considerada “impecável” no modo de atendimento, nos tempos de espera e na presença dos médicos.
Colocado perante o quadro descrito, Jaime Azedo conclui que “é manifesto que o Estado falhou ao não conseguir dar aos cidadãos o mesmo grau de qualidade dos serviços que dá aos cidadãos do litoral. O Estado abandonou o interior do país”, acusa o dirigente da OM, receando que seja com situações como a que se observa no distrito de Portalegre “que se inicie o desmoronamento do Serviço Nacional de Saúde tal como o conhecemos”.
O PÚBLICO solicitou uma entrevista ao presidente do conselho de administração da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, João Moura Reis, que não foi possível concretizar “devido a compromissos já assumidos” por este responsável, que propôs uma outra “oportunidade atempadamente marcada”.