Duas mulheres mortas em 24 horas. São já 29 as mortes por violência doméstica este ano
Em duas semanas, foram três as mulheres que morreram às mãos dos maridos ou ex-companheiros, num total de 23 desde Janeiro. Em 2018, foi noticiada a morte de 28 mulheres, mas os dados do RASI davam conta de 39 homicídios em contexto de violência doméstica.
Dois homicídios de mulheres em menos de 24 horas: uma mulher de 30 anos foi encontrada morta numa mala de viagem na quarta-feira – o seu companheiro, suspeito do crime, foi detido – e uma mulher de 92 anos foi morta na manhã desta quinta-feira, com dois tiros disparados por um homem de 89 anos. A confirmar-se de que se trata de homicídios em contexto de violência doméstica, sobe para 29 o número de vítimas mortais só este ano. No ano passado, foram noticiadas as mortes de 28 mulheres que morreram em contexto de violência doméstica, e o Governo registou 39 destes homicídos.
Não há ainda números oficiais quanto às mortes registadas este ano em contexto de violência doméstica; estes números resultam das contas feitas pelo PÚBLICO com base nas notícias publicadas desde o início do ano. Contactada pelo PÚBLICO, a Procuradoria-Geral da República (PGR) diz que há pelo menos 23 vítimas do sexo feminino (incluindo uma criança) e seis vítimas do sexo masculino “com indícios seguros de morte ocorrida em violência doméstica”. E acrescenta: “Existem outros casos, designadamente com vítimas mulheres, que ainda não é possível assegurar com a necessária segurança que as mortes ocorreram em contexto de violência doméstica, aguarda-se que as investigações esclareçam os exactos contornos.”
No primeiro caso, a investigação apurou que o homem foi “possivelmente motivado por questões de natureza passional” e, na manhã de quarta-feira, “atingiu a vítima com um golpe letal de arma branca, desferido num quarto que ambos haviam arrendado”. O cadáver da vítima acabaria por ser encontrado de tarde, junto à urbanização Fonte do Ouro, na vila de Arruda dos Vinhos, dentro de uma mala de viagem. Tinha várias faixas de fita adesiva, o que despertou a atenção dos moradores, que alertaram as autoridades.
Segundo o presidente da câmara de Arruda dos Vinhos, André Santos Rijo, tratava-se de “um casal jovem de cidadãos brasileiros recém-chegados, que morava em Arruda há cerca de 15 dias”, disse numa publicação feita no Facebook. “Ela era trabalhadora da restauração, ele trabalhador da construção civil e os vizinhos ainda não tinham notado sinal de violência ou agressividade entre ambos. Não havia sinalização por parte de qualquer autoridade, afinal eram também recém-chegados”, escreveu. O suspeito foi detido pela Polícia Judiciária, “escondido num espaço com vegetação densa nas proximidades” e será presente a primeiro interrogatório judicial.
Já o segundo caso aconteceu em Paços de Ferreira, quando um homem de 89 anos atingiu a companheira de 92 anos com dois tiros na cabeça, às 7h20 de quinta-feira, na residência do casal. O suspeito encontra-se detido.
Em duas semanas, foram três homicídios. A 18 de Setembro, Gabriela Monteiro foi degolada em Braga pelo homem com quem se casara e de quem já se tinha separado. O homem acabou por entregar-se numa esquadra da Polícia de Segurança Pública, dizendo que tinha ferido “a companheira com uma arma branca”. A vítima trabalhava no Theatro Circo, onde se fez então uma vigília em sua homenagem e em homenagem a todas as vítimas de violência doméstica – e não abriram as portas do teatro nesse dia. Gabriela tinha dois filhos de uma relação anterior; o suspeito de homicídio também tem um filho de uma relação anterior.
O Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2018 dava conta de que tinha havido nesse ano um total de 110 homicídios voluntários, 39 deles em contexto de violência doméstica – o mesmo que está relatado no relatório anual de 2018 da APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) relativo a homicídios consumados. Nos 110 homicídios, 61% das vítimas eram mulheres.
O número de queixas apresentadas nos postos da GNR e nas esquadras da PSP continua elevado. Segundo o Relatório Anual de Monitorização de 2018, as forças de segurança registaram nesse ano 26.432 participações de violência doméstica. Lisboa (5981), Porto (4614), Setúbal (2458), Aveiro (1804) e Braga (1801) foram os distritos com mais queixas.
O que está a ser feito?
Em Março, uma resolução do Conselho de Ministros criava a comissão técnica multidisciplinar para a “melhoria da prevenção e combate à violência doméstica”. Três meses depois, o relatório final dessa comissão técnica sugeria que houvesse uma melhoria da protecção das vítimas de violência doméstica nas 72 horas após uma denúncia e que era imperativo haver uma acção “intensiva e célere”. O relatório propunha ainda “a criação de uma rede de urgência de intervenção, que possa ser accionada 24 horas por dia, envolvendo as autoridades judiciárias, os órgãos de polícia criminal e as estruturas de apoio à vítima”.
Em Julho, o PÚBLICO noticiava que só 152 câmaras (são 308 no total) integravam a rede solidária de municípios criada em 2012 com o objectivo de incentivar a autonomização das vítimas de violência doméstica através da disponibilização de habitações ou de apoio ao arrendamento. A iniciativa, que faz parte da estratégia de cooperação entre a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) e a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), tem como objectivo responder à necessidade anual de 250 casas para vítimas deste crime. No ano passado, só foram cedidas 31 habitações.
Questionados pela CIG através de um inquérito online sobre a não adesão ao protocolo, metade das autarquias admitiu não conhecer o programa e reconheceu que não tem habitação para este fim. Já 13% não o consideravam prioritário.
Antes das eleições legislativas, o PÚBLICO falou com os líderes dos seis partidos parlamentares que se candidatam às legislativas para perceber o que se propõem fazer para fazer frente à violência doméstica.
O candidato do PSD, Rui Rio, não entende como necessário alterar a revisão constitucional no que toca a esta matéria. “Aquilo que nós entendemos como fundamental é apurar a legislação e procurar que se apurem as sentenças judiciais de modo a que a vítima fique claramente afastada do agressor e que seja a vítima que tem direito a ficar em casa com o filho ou com os filhos e não o agressor e a vítima é que tem de fugir.”
Já António Costa, candidato pelo PS, acredita que o mais importante é “pôr em prática” as recomendações da comissão técnica e que é “fundamental começar a prevenção cedo, desde logo na violência no namoro, na escola, e em todas as formas de combater a violência de género”. E, a nível judicial, tem de haver “um tratamento integrado dos fenómenos de violência doméstica”, que considera ser uma “chaga” na sociedade portuguesa – e diz que talvez seja “suficiente” a existência de formações multidisciplinares no tribunal”.
Pelo Bloco de Esquerda, Catarina Martins, diz que há necessidade de uma “articulação entre os tribunais penais e os tribunais de família para que as sentenças sejam coerentes e não vitimizem várias vezes as vítimas de violência doméstica” – não sendo necessária uma revisão constitucional para o fazer. O Bloco também defende que “as crianças têm de ter o estatuto de vítima” e “mudar o paradigma”, o que se consegue com muita formação.
Jerónimo Martins, do PCP, fala na “necessidade de persistir na prevenção e na protecção das vítimas” – e diz que o partido não está de acordo com uma revisão constitucional porque é “abrir a caixa de Pandora em relação a outras matérias”.
A líder do CDS, Assunção Cristas, indica que se trata de “uma situação gravíssima que ainda não está resolvida”, sendo preciso articular organismos e encontrar respostas mais eficazes. “É preciso melhorar a legislação no que tem a ver com o quadro penal e também tem a ver com melhorias na natureza dos crimes, tornando às vezes a coação e a ameaça como crimes públicos.”
O porta-voz do PAN, André Silva, diz que o “Estado tem feito vários avanços sobre esta matéria”, mas que ainda não são suficientes. “Temos muitas medidas no nosso programa para combater a violência doméstica, nomeadamente a criação de tribunais especializados”. E ainda a “possibilidade de vítimas que sofreram de violência doméstica ou abuso sexual terem possibilidade de uma licença de dez dias pagos para encontrarem estratégias para um novo alojamento ou para lidarem com o sucedido”.
Notícia actualizada às 8h25 de 4 de Outubro: acrescentados os dados cedidos pela PGR.