Em Arouca, há uma Feira das Colheitas, das memórias e da identidade

Arouca está em festa este fim-de-semana, reunindo na vila as histórias, tradições e produtos mais típicos de um território com 329 quilómetros quadrados dedicados sobretudo à floresta e à lavoura. Tendo começado na II Guerra Mundial para elevar os ânimos e proteger os costumes, a Feira das Colheitas faz 75 anos e de parabéns estão a memória e a identidade da terra inteira.

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Na sua primeira edição, a 22 de Outubro de 1944, a Feira das Colheitas atravessava uma vila de Arouca ainda mais pequena do que é hoje e dispunha-se apenas por algumas centenas de metros ao longo da sua avenida principal e da Rua de Santo António. Os tempos eram de modéstia: ingleses e alemães não causavam problemas na comunidade de tão concentrados que estavam a explorar as minas de volfrâmio que alimentavam os recursos bélicos da II Guerra Mundial, mas a atracção que a actividade mineira exercera nos recursos humanos da terra esvaziou os campos agrícolas e até o prolífero milho acabou por escassear. Impunha-se estimular o regresso à lida do campo para garantia de subsistência geral e o Grémio da Lavoura de Arouca lançou o certame para estimular um novo apreço pela agricultura em geral e pela produção cerealífera em particular.

A estratégia envolvia três ângulos de actuação: mostrar a excelência do que se produzia na região para incentivar o brio de quem se descurara; eleger os melhores de cada actividade em concursos como os que premiavam os criadores de raça arouquesa e os fabricantes de fruta e linho; e motivar momentos de convívio com recurso a ranchos folclóricos com reputação então idêntica à das bandas no topo da actual tabela discográfica. A historiadora local Ana Cristina Martins tem investigado o tema e revela, aliás, que essa visão apurou a dinâmica e o bairrismo dos diversos povoados do concelho, já que “as populações se organizaram para que as respectivas freguesias conseguissem ter um rancho para levar à vila e apresentar na Feira das Colheitas”.

Parque Municipal de Santa Mafalda, Arouca Paulo Pimenta
A produção de cogumelos de Madalena Silva Paulo Pimenta
A produção de cogumelos de Madalena Silva Paulo Pimenta
Paulo Pimenta
A vila de Arouca Paulo Pimenta
A vila de Arouca Paulo Pimenta
A vila de Arouca Paulo Pimenta
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Mosteiro de Arouca Paulo Pimenta
Rosa Vieira guarda memórias dos tempos idos da Feira das Colheitas Paulo Pimenta
Paulo Pimenta
Os doces produzidos por Daniel Calçada Paulo Pimenta
Paulo Pimenta
Madalena Valente Paulo Pimenta
Albano Reis, criador de vacas Paulo Pimenta
Albano Reis, criador de vacas Paulo Pimenta
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Parque Municipal de Santa Mafalda, Arouca Paulo Pimenta

Em poucos anos, o evento ultrapassou assim a sua inicial dimensão agropecuária, ganhou dimensão de festa popular e acabou por ultrapassar a mais antiga romaria de São Bartolomeu, entretanto extinta. O impacto dos ranchos também crescia: esses grupos passaram a competir entre si em categorias como o traje, a execução de danças tradicionais como o vira e a chula, e o desempenho dos seus cantadores solistas. Em 1946 a festa já chamava as atenções do Estado, recebendo a orquestra e o orfeão da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, e em 1956 acolhia a exibição de filmes seleccionados (censurados?) pelo Secretariado Nacional de Informação e pela Federação Nacional dos Produtores de Trigo. Ana Cristina Martins afirma, no entanto, que as suas pesquisas nunca encontraram relatos sobre a ingerência de “directrizes políticas” na vida dos protagonistas da maior festividade local.

Madalena Valente tinha seis anos quando surgiu a Feira das Colheitas e lembra-se de ficar deslumbrada com o viço das hortaliças, com o tamanho dos melões e melancias que só nessa data via à venda, com os aplicadores de agrafos em cerâmica partida, os panos de Esmoriz, o despique entre rusgas e bandas, os carrosséis de cadeiras no ar e as donzelas aprumadas junto aos carrinhos de choque. “Eram os rapazes a pagar e a gente punha-se na primeira fila para ver quem é que eles chamavam”, recorda. No dia seguinte, ao acordar, os seus primeiros passos na rua eram ainda pontuados por riso, perante a figura dos embriagados que, incapazes de regressar a casa, ficavam a dormir pelos passeios – o que o genro Benedito Soares diz que, ao fim de 75 anos, “é “tradição que ainda não acabou”.

O que mudou foi o restante: a Feira das Colheitas cresceu de duas ruas para 20 hectares de terreno no centro histórico da vila, tem agora 60 bancas de vendas de artesanato e 18 de hortícolas, acolhe ainda mais 28 stands de produtos regionais, 11 tabernas e restaurantes, e 11 expositores ligados ao turismo, à floresta e a outras actividades locais. A festa de quatro dias em que a autarquia investe anualmente 140.000 euros envolve o trabalho diário de mais de 750 pessoas, apoiadas por estruturas como um sistema eléctrico com 4,5 quilómetros de fios, dois palcos para actuação de ranchos e artistas como Carolina Deslandes e Amor Electro, e outros equipamentos de apoio a encontros de concertinas, concursos de broa e vinho verde, desfiles de gado e açafates, chegas de bois e carneiros, desfolhadas, vendas de velharias e exposições de fotografia, etnografia, máquinas agrícolas e animais. Há até provas de BTT, sessões de ioga para famílias e terapia com taças tibetanas.

A festa da lavoura que nasceu da escassez adaptou-se aos tempos modernos, passou a partilhar-se na Internet, fez-se “instagramável”. Na sua base continua a ter a celebração da faina mais essencial de Arouca, que é a da terra e dos seus animais, mas, num território com 329 quilómetros quadrados e 90% de área florestal, só com perseverança se resiste ao avanço do eucalipto, aos efeitos dos incêndios e à descaracterização da paisagem autóctone. Entre as gentes do lavradio, os mais velhos continuam a produzir alimentos de primeira necessidade e a cuidar do gado, queixando-se de uma vida de sacrifício cada vez mais amargurada; os mais novos arriscam em nichos de mercado com maior procura além-fronteiras e conciliam a lavoura com empregos por contra de outrem. Como a tecnologia os ajuda na gestão do tempo e das distâncias, os jovens garantem que é o trabalho da terra o melhor desses dois mundos. Passaram-se 75 anos, tanto mudou e, afinal, é às origens que a evolução os devolve. 

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Madalena Silva produz cogumelos shitake Paulo Pimenta

Madalena Silva

“Os cogumelos não reclamam, não refilam, não chateiam

Na estufa onde Madalena Silva tem a sua produção de cogumelos, os milhares de troncos de madeira que por lá se dispõem estão vazios. O cenário é decepcionante para quem aprecia os shitake e esperava encontrá-los por todo o lado, mas está-se em Setembro e essa ausência é intencional: como o principal negócio da família ainda é uma papelaria, por esta altura a prioridade é satisfazer a procura típica do arranque do novo ano escolar. Mas Madalena bem preferia ficar sozinha no escuro do armazém, mesmo passando o dia inteiro a carregar troncos de sete a 30 quilos até às piscinas insufláveis onde os mergulha para activar a inoculação do fungo. Começou por ter como actividade profissional a contabilidade, mas, após muitos anos ao serviço de uma associação de apoio à agricultura em Amarante, percebeu de imediato o potencial que lhe caiu em mãos ao herdar terras da família. “Decidimos tentar os cogumelos porque não dão tanto trabalho, só há produção quando queremos e assim podíamos conciliar isto com a papelaria nos Carvalhos [em Gaia]”, explica.

Entre 130 toneladas de madeira, o trabalho manual não é sofrido como Madalena ouvia descrever décadas atrás, quando a produção privilegiava hortícolas de cultivo mais árduo, ou como vê hoje pela lida dos criadores de gado, que todos os dias estão presos à obrigação de alimentar os animais. No seu armazém de 1000 metros quadrados em Mansores, as tarefas da empresária de 36 anos podem ser repetitivas, mas são sanas. Primeiro recolhe-se e limpa-se a madeira de onde irão brotar os cogumelos, depois martela-se toda a superfície do tronco para nele enterrar as cavilhas imbuídas do fungo certo, de seguida transporta-se cada rolo até à banheira onde a quantidade desejada ficará submersa em água durante 24 horas e, após a disposição dos troncos húmidos pelo pavilhão, é só esperar três a quatro dias para colher os shitakezinhos enquanto estão de “chapéu fechado”, para poderem viajar por mais tempo em condições ideais até aos clientes distribuídos pelo estrangeiro. “Adoro isto”, declara Madalena. “Trabalhei toda a vida fechada e aqui ando ao ar livre, não lido tanto com o público e ainda tenho tempo para a minha filha”, acrescenta, apontando com a cabeça para a casa ao lado, onde a bebé, abençoadinha!,  dorme “em paz e sossego sem dar trabalho nenhum”.

O arranque do negócio implicou 100.000 euros de investimento em 2013 e a facturação anual da marca Sabor dos Cogumelos está actualmente nos 15.000 euros, mas, se mais terra tivesse, mais cogumelos Madalena venderia. Brotam em grande quantidade de Abril até final de Outubro, vendem-se frescos ou secos, e “o escoamento está todo garantido” para distribuidores com base em Portugal ou clientes de Espanha, França e Alemanha. Entre embalamentos, entregas e procedimentos para certificação como produto biológico, não há tempo para a Feira das Colheitas. “São muitos dias de festa e é mesmo em Setembro, quando estamos com o stress todo na papelaria”, diz Madalena, que se diz “morta por ver o mês acabar” para poder dedicar-se em exclusivo à estufa. “Houve gente que pode ter sofrido muito na agricultura, noutros tempos, mas não é o meu caso”, garante. “Aqui é que eu estou bem. Os cogumelos não reclamam, não refilam, não chateiam – e estou a criar alguma coisa que se vê mesmo.”

Daniel Calçada

Quanto mais o corpo se mata, mais a cabeça agradece

Quando lhe perguntamos que pedaço de terra é o seu, Daniel Calçada faz um gesto com o braço a abarcar toda a paisagem de Moldes em torno da Quinta da Aula Velha. “É isto tudo que se vê”, diz ele. Nós rimo-nos e depois é que percebemos a nossa pequenez: todas aquelas terras, quase até perder de vista, são efectivamente desse agricultor de 33 anos. “Três hectares são só para castanheiros, meio hectare é de pomar, há mais um e meio de mirtilo, e depois não sei quantos de mato”, explica.

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Daniel Calçada tem castanheiros e mirtileiros e ainda um pomar de onde saem frutos com que produz compotas Paulo Pimenta

Daniel herdou todas essas terras dos avós, em 2013, e, ao decidir rentabilizar a propriedade até então sem cultivo, apostou em castanheiros e mirtileiros. Correu bem: dos 11.000 euros de investimento inicial, grande parte foi para terraplanagens e para 5500 pés do arbusto que gera bagas de tom preto azulado, mas “a mão-de-obra foi toda da família e o investimento recuperou-se em pouco tempo”. O volume de negócios situa-se agora em cerca de 30.000 euros por ano, metade dos quais só em mirtilo. Os outros 15.000 euros devem-se a fruta saborosíssima já em processo de certificação biológica: kiwis, maçãs, ameixas, maracujás, damascos, marmelos, figos, etc., sempre em diferentes variedades. “Tudo se aproveita. A maioria vai para hotéis e para exportação, mas, quando nos pedem, também fazemos polpas ou compotas”, revela, dando várias frutas a provar.

O mais dispendioso são as alfaias agrícolas, máquinas e câmaras de frio, porque equipamentos como os que permitem descaroçar fruta e desidratá-la são avultados. Até nisso, contudo, Daniel tem sorte: como continua a ter como principal ocupação profissional o cargo de desenhador numa empresa de metalomecânica, o patrão está disposto a facilitar-lhe a criação interna dos mecanismos de que precisa, o que representará uma significativa poupança e até testará a viabilidade desses equipamentos para posterior comercialização no sector agro-alimentar. 

Entretanto, reforça-se a gama de compotas e a Feira das Colheitas é paragem obrigatória para as testar junto do público. Em cada ano, serão uns 1300 frascos à venda e, entre 500 referências distintas, há desde as receitas mais básicas e tradicionais até combinações menos comuns como a de abóbora com mirtilo, maçã reineta e pimento, figo com amêndoa, cebola e vinho do Porto, e mirtilo com castanha – “sempre a 2,50 euros cada compota, para facilitar as contas e os trocos”.

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Paulo Pimenta

Para Daniel, a presença no evento é “obrigatória” por diferentes razões: porque esse é o maior momento de animação na vida do município e afirma a identidade local; e porque o certame integra a rota dos distribuidores de produtos agrícolas e regionais, resultando sempre em “mais clientes e novos contactos para exportação”.

Isso revela-se ainda mais pertinente este ano, já que na Quinta da Aula Velha há agora duas novas ambições: obter a certificação de fabrico biológico para as compotas e instalar a respectiva linha de montagem no edifício de pedra que há um século funcionava efectivamente como escola. “Assim é que se vai aproveitar mesmo tudo, qualquer que seja o calibre da fruta e quer ela esteja tocada ou não”, diz Daniel. Tudo indica que esse se tornará um negócio da China – até porque já há clientes desse país em lista de espera para comprar à família Calçada as suas futuras compotas biológicas – e o mais provável é que, daqui a cinco anos, quando a exploração estiver no pico do seu potencial, Daniel troque o emprego na metalomecânica pela lida constante da terra. Será uma opção com tanto de cerebral quanto de espiritual. “Claro que antigamente a agricultura era uma vida muito mais difícil porque não havia tecnologia nem tanta formação como agora”, argumenta. “Mas agora é uma vida boa. Mais saudável. Da fábrica saímos sempre com o corpo sossegado, mas com a cabeça toda estourada; aqui o corpo mata-se a trabalhar, mas a cabeça está sempre fina e tranquila.”

Rosa Vieira

Treze filhos, 23 netos, sete bisnetos e nenhuma amargura

Rosa Vieira já tinha mudado de casa várias vezes, mas a ida para Santa Maria do Monte foi a que mais lhe custou. Com todas as trouxas numa carroça, os filhos a acompanhá-la pelo próprio pé, “a cachopita mais nova ao colo e uma ovelha presa por uma guita”, só pensava: “A que buraco é que eu vim parar?”, recorda agora no discurso fluido e animado que rouba décadas aos seus 83 anos.

Trabalhando como caseira para outros proprietários, manteve sempre duas ou três vacas de leite para poder alimentar todas as bocas da casa e ainda vender algum à cooperativa, fiava linho num fuso a lembrar o da Bela Adormecida, cultivava feijão, batatas e os outros legumes com que confeccionava caldos e broas. Quando deu por si, já tinha casa própria na aldeia que lhe desagradara, um jardim todo catita com dezenas de vasos e uma esplanadinha onde se põe a separar fisálias – sempre com óculos de sol escuros, que parecem um adereço de beleza, mas são para lhe proteger a vista.

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Rosa Vieira tem muitas memórias para partilhar sobre os primeiros anos da Feira das Colheitas Paulo Pimenta

“Não tenho de que me queixar na vida e os meus filhos nunca me deram desgosto nenhum”, garante. Os miúdos dividiam tarefas com a mãe, vestiam “todos satisfeitos” os sacos de juta que ela esvaziava de batatas para lhes pendurar sobre a cabeça como gabardinas em dias de chuva e, se se queixavam que a professora os injustiçara, ouviam dela que alguma coisa deviam ter feito para o merecer. Eram “outros tempos”, em que se dormia bem sobre carqueja e havia mais gratidão. “Uma vez, pelo Natal, eu não tinha nada para dar aos miúdos, o meu homem já estava internado há muito tempo com problemas de coração e o que arranjei foi um pão de trigo para cada um”, conta. “Foi a maior alegria quando viram aquilo! Era melhor do que receber um telemóvel nos dias de hoje!”

É dessas emoções simples que Rosa tem saudades quando vai à Feira das Colheitas, 75 anos depois da sua primeira edição. “Parece impossível como aquilo era tão pequenino e agora ocupa a vila toda”, avalia. Hoje vai de carro, mas, quando era moça e vivia em Espiunca, o caminho fazia-se por 20 quilómetros através dos montes, sempre de pé descalço. “Uma vez até me saiu um pedaço de carne do dedo ao bater com o pé numa pedra, mas foi tirar uma rodilha de um pano, embrulhar a ferida e continuar”, sempre descalça, porque “as chinelas só se punham à entrada da vila, para não se estragarem pelo caminho”.

Quanto ao programa, “o que tinha mais influência era o rancho” e o convívio em torno do farnel. Água e vinho bebericavam-se a partir de uma cabaça oca enrolhada por cortiça e o estômago aconchegava-se com “muito presunto, salpicão e broa”. É essa última que Rosa confecciona com a filha na Feira das Colheitas, num espaço do Terreiro de Santa Mafalda onde também a procuram pelos seus bolos de carne e de sardinha. “Gosto de ir para lá ver o que se passa”, admite. “Sabe-me bem falar com as pessoas, ouvir-me a dizer umas tolices e ver a malta a rir-se.”

Albano Reis

O criador de vacas premiadas que se orienta pelo sol e pela barriga

Quem sempre andou pela Feira das Colheitas sabe que um dos criadores de gado mais vezes premiado nos desfiles da raça arouquesa foi Albano Reis, da Quinta da Ribeira, na Valdasna. Quando o vamos ver, é a família que nos recebe porque ele ainda anda no campo e não reparou nas horas. “Ele não usa relógio”, diz a filha. E o pai confirma pouco depois, quando se junta ao grupo em resposta ao nosso aceno: “Oriento-me pelo sol. E pela barriga”, acrescenta, habituado que está a refeições à hora certa e de prato cheio.

Albano tem 82 anos, um rosto bonacheirão e o hábito de se levantar sempre às seis da manhã para alimentar 12 vacas e vitelos. Já teve muitos mais animais – as vacas chegaram a ser 25 e cada uma dava 60 litros de leite por dia –, mas trata os que preserva com a mesma estima e só abandonou os concursos porque “todos querem o primeiro prémio, começam a discutir uns com os outros e isso só dá chatices”. Também lhe desagrada ver na competição criadores de outras paragens “porque, se o concurso é de raça arouquesa, os animais só deviam poder ser de Arouca”, mas continua a reconhecer vantagens à competição que, além de prémios monetários, sempre representou banhos de mimo para o gado. “Quando andava nos concursos, as vacas eram como as mulheres que vão ao cabeleireiro para um casamento: eu escovava-lhes o pêlo muito bem, lavava-as com Omo, penteava-lhes as repas, passava-lhes uma lixa com água e sabão nos cornos, e, depois de muito bem enxutos, ainda os encerava com azeite para ficarem brilhantes”, ensina.

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As vacas de Albano Reis já foram muitas vezes premiadas nos concursos de raça arouquesa Paulo Pimenta

Quando lhe perguntamos qual o preço de um animal assim bem tratado, Albano desconversa, lista detalhes que influem na apreciação do espécimen sem revelar valores concretos e conta que às vezes cede vacas a penso para que outros as alimentem até ao momento de serem vendidas e se repartir a receita por proprietário e tratador. Desconversa, sim, mas é contestatário: diz que “os governantes não ligam nenhuma à lavoura”, que anda “gente a mais a viver do Rendimento Mínimo Garantido” enquanto ele trabalha “12 a 14 horas por dia”, que os prémios dos concursos de raça deviam ser em géneros “para mais gente ter que fazer compras na cooperativa” e que essa estrutura também “devia investir num tractor comunitário para alugar” a quem tem poucos recursos e assim facilitar melhor gestão das terras.

Albano diz tudo isso sem se exaltar, ao contrário do falecido pai, que seria muito amigo dos filhos, “mas tinha muitos nervos”. Assim se explica que não houvesse facilidades durante a Feira das Colheitas: o rapaz era “o guardião” das irmãs, só as deixava circular nuns 150 metros “entre a loja do Ilídio e a pensão do Freitas” e às duas da manhã regressavam todos a pé a casa. “Chegávamos lá pelas quatro e então é que já nem íamos à cama, que não valia a pena. Até dormíamos em pé durante o dia, no campo, mas tinha que ser.”

Mesmo assim, o desgaste sempre valeu a pena porque a Feira das Colheitas “dava uma boa festa: tocavam-se concertinas, cantava-se e dançava-se, ia-se jantar carne assada à pensão do Alexandre e depois ainda se tomava café”. Naqueles dias “não faltava nada” e tudo se regava bem. “Se eu tivesse sede, bebia! Agora é que há 40 anos que não bebo nadinha”, contabiliza, em respeito para com regras que o ajudam a manter a saúde após um cancro antigo.

O genro de Albano ainda vai ajudando na quinta – “não é por ser meu genro, mas não há como aquilo, muito boa pessoa e trabalhador” –, mas as netas vão seguir carreiras ligadas à Veterinária e à Medicina. A mãe delas também ainda trata da quinta, mas é a outra a sua actividade principal. Estará agora a descansar dos excessos da infância, porque o próprio pai atesta: “A minha Conceição trabalhou sempre muito. Tem muita mão para sementes e, de agricultura, sabe de ai Jesus!”.

Madalena Valente

 Viúva, mas contente

Madalena Valente já pouco caminha, mas, se lhe ouvíssemos apenas a lucidez e graça, ninguém diria que tem 81 anos. Junto a um pomar farto de aprumado jardim, conversa com a amiga Angelina e diz-nos que já não vai à Feira das Colheitas porque caminhar de bengala entre tanta gente seria um suplício e a sua vaidade não se coaduna com cadeira de rodas. Pensando na primeira edição, há 75 anos, faz as contas: “Tão pequeno que aquilo era… Alguém pensava que fosse durar estes anos todos?”

Órfã de pai desde os 11 anos e com o irmão ausente pouco depois, aos 13 já Madalena trabalhava no Mosteiro de Arouca, “a alombar pelas escadas acima com cimento à cabeça, descalça”. Em casa não chegou a passar fome, mas comeu muitas vezes “só pão de farinha de cevada”, o que justifica que aos 15 anos tenha decidido casar-se, “convencida de que ia melhorar a vida”. Enganou-se. “Ele era muito mauzote para mim”, desabafa. “Em cinco anos tive quatro filhos e, mesmo com o mais novo na barriga, ele mandava-me carregar lenha. Quando saía para o trabalho marcava-me o serviço para fazer e ao almoço eu ainda ia a pé a Bustelo levar-lhe a comida, que os homens naquele tempo eram muito machões.”

Madalena só teve mais sossego quando o marido emigrou aos 29 anos para França: “Ele vinha cá e no dia a seguir a ir-se embora outra vez, eu acordava de manhã e parecia que toda a natureza se ria para mim!”. Foi num desses períodos de ausência, aliás, que Madalena viveu a sua maior aventura. Não foi um affaire romântico – o marido tinha como qualidades o facto de confiar nela apesar de ser 11 anos mais nova –, mas foi um caso de amor. Os filhos ofereceram-lhe de presente de aniversário uma viagem ao Brasil, para que no Natal pudesse visitar o filho que emigrara 20 anos antes, e a alegria foi enorme. Quando contou ao marido, contudo, “ele pôs-se a gritar” toda a lista de obrigações que ela não podia descurar em casa. Madalena fez que sim, remoeu e pensou num estratagema. Alterou as datas da viagem, esperou que o marido regressasse a França, deixou com a vizinha uma série de cartas pré-preenchidas e foi de viagem sem lhe dizer. “A conversa dele era sempre a mesma: se o vinho das pipas estava bom, se o toiro andava em condições...”, relembra. “Como ele nunca perguntava pela minha saúde nem pelos filhos, eu escrevi o costume, deixei as cartas todas prontas à minha amiga e ela só tinha que pôr as datas e preencher os buracos em que ele falasse de dinheiro.”

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Madalena Valente também tem muitas histórias para contar sobre a Feira das Colheitas Paulo Pimenta

No Brasil, a felicidade do reencontro com o filho compensou o risco, mas o nervosismo de Madalena fê-la antecipar o regresso. Quando o marido voltou a casa, ela sonha que ele a mata e, vendo nisso um aviso, conta-lhe tudo no lagar, antes que ele descubra por outras vias. “Olha que eu fui ao Brasil”. Pausa. “Foste aonde?”. E ela repetiu. Disse-lhe que não esteve para correr o risco de nunca mais ver o filho nem conhecer o neto e a conversa ficou por aí. A que se devia a recusa dele, afinal? Ciúme? Inveja de só ela ter recebido convite? Medo de ser chamado a andar de avião? “Não era nada disso”, assegura Madalena. “Ele só não queria deixar o gado.”

Foram 46 anos “a aturar o Diabo – que, quanto mais o tempo passava, mais amargoso ficava” – e por isso é que Madalena prefere memórias agradáveis como as da Feira das Colheitas. Lembra-se da rua decorada por “arcos com cachos de uvas em madeira”, de ficar “à janela a ver tudo dançar e cantar”, de se rir de “uns bêbedos que já trocavam as pernas” e de se sentir uma estrela com “a sainha azul e uma camisa de ‘burgundy’” que a irmã lhe emprestara. Eram tempos mais alegres – “pelo menos até à fase do Ultramar”. Quando a guerra começou “é que se deixou de ouvir gente a cantar nos campos…”.

Há ali uma pausa desconfortável, mas Madalena, madura, não deixa que ela se instale. Distrai família e vizinhos com quadras que eles desconheciam ocupar-lhe as horas vagas e canta-lhes, uma a uma, as maravilhas de Arouca. Ouvimos-lhe o hino em silêncio e pasmo.

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