Para que servem os museus?
Porque é que os cidadãos investem (através do Estado) no estudo do passado? Porque é que se preservam e estudam os objectos que compõem as colecções dos museus? Não será para que se possa analisar de forma crítica o passado, olhar de forma informada para o presente, imaginar a sociedade melhor que queremos criar no futuro?
Desde que se levantou a questão da criação de um Museu das Descobertas em Lisboa, não têm faltado vozes a alertar contra o fanatismo, o policiamento da linguagem, a nova inquisição, o branqueamento da história (uma listagem, não exaustiva, dos artigos de opinião publicados encontra-se no meu blogue Musing on Culture).
O “alerta” mais recente vem da parte de António Barreto, num artigo intitulado Três museus. Em relação à discussão à volta do Museu das Descobertas, Barreto afirma que “O suposto ponto de vista das vítimas substituiu o alegado ponto de vista dos opressores. O lado negro das Descobertas foi transformado em lado primordial.” Quem, concretamente, pediu para substituir uma narrativa com outra? Quem, concretamente, sugeriu considerar uma das verdades dessa história como sendo primordial? O autor não nos diz.
Continuando, avisa que “há muita gente que quer condicionar o pensamento contemporâneo, dominar a cultura actual, limitar as interpretações da história, determinar o que se deve estudar e regular o modo como se deve pensar.” Em que momento António Barreto [assim como outros intelectuais] terá expresso a sua preocupação em relação à história única, dominante, ‘primordial’ ainda ensinada nas escolas portuguesas? Em que momento ter-se-á sentido indignado com o que consta ainda nos manuais escolares? Em que momento terá exigido, no passado, que os museus abordassem as histórias que têm para contar de forma democrática, plural, polifónica? Como é que o surgimento de outras vozes, a afirmação de outras verdades, a exigência de representação da parte de mais (de ‘outros’) cidadãos pode provocar tanta preocupação e resultar em avisos contra o totalitarismo? Será que é, precisamente, a polifonia que incomoda? A perda de controlo sobre a versão da história que será contada?
A proposta para uma nova definição de museu (cuja discussão foi adiada na primeira semana de Setembro na Assembleia-Geral do ICOM - Conselho Internacional dos Museus no Japão) refere, entre outras coisas, que “Os museus são espaços democratizantes, inclusivos e polifónicos para um diálogo crítico sobre os passados e os futuros.” São? Serão? Deveriam ser?
Apesar de ter sérias críticas a fazer à proposta para a nova definição (que partilhei recentemente no meu blogue), acredito que os museus têm, sim, este papel social e político na sociedade. António Barreto e outros parecem desejar museus ‘neutros’, mas eles nunca o foram, esta é uma grande ilusão partilhada por muitos. Todos os dias os museus tomam decisões em relação ao que vão preservar ou não; ao que vão estudar ou não; ao que vão contar ou não; ao que vão mostrar ou não. Não há nada de neutro nessas opções. O facto de não se fazer certas referências, de não procurar a polifonia nos objectos preservados está muito longe de ser um acto de neutralidade. Pode ser, pelo contrário, um acto de reforço de narrativas dominantes, de histórias únicas; um acto muito pouco democrático, que exclui intencionalmente uma parte da sociedade da negociação que é a vida em comum, do exercício da arte que é a política.
Neste contexto em que se fala de museus ‘neutros’ e em que se alerta contra a polifonia na sociedade (e, em particular, nos museus), foi com grande preocupação que li a opinião do novo director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), Joaquim Caetano, em relação à proposta da nova definição de museu (partilhada num artigo recente no Ípsilon, onde tive também a oportunidade de dar o meu contributo): “É importante abrir os museus a cada vez mais pessoas, certamente, mas não são eles que vão criar a igualdade de género, de raça ou económica. Posso democratizar o acesso ao passado num museu, mas não posso democratizar o passado.”
A interpretação do director do MNAA é, no mínimo, curiosa. Quem poderia exigir que as colecções dos museus servissem para “democratizar o passado”, que contribuíssem para criar mitos? No entanto, a pergunta que teria a fazer ao director do MNAA e a outros dirigentes de museus seria: Porque é que os cidadãos investem (através do Estado) no estudo do passado? Porque é que se preservam e estudam os objectos que compõem as colecções dos museus? Não será para que se possa analisar de forma crítica o passado, olhar de forma informada para o presente, imaginar a sociedade melhor que queremos criar no futuro? Não será para que se possa comentar e reagir de forma crítica à proposta (mal explicada) de uma Câmara Municipal para a criação de um Museu Salazar? Se as colecções dos museus não puderem servir este tipo de reflexão e orientar a nossa acção num Estado democrático, para que servem, então, os museus?
No mesmo artigo no Ípsilon, outros dois colegas lembram-nos que não nos devemos afastar da função primordial dos museus, que Paulo Costa (director do Museu Nacional de Etnologia), limita à salvaguarda das colecções e que Luís Raposo (arqueólogo e presidente do ICOM Europa) alarga para o estudo e a divulgação (seria importante percebermos o que entende por “divulgação” – de quê e para quem). De acordo com a actual definição de museu do ICOM, um museu está ao serviço da sociedade, assumindo as funções de aquisição, conservação investigação, comunicação e exposição do património material e imaterial com fins de educação, estudo e deleite. De que forma os museus portugueses têm respondido, na prática, a este compromisso? Porque é que fazem o que fazem e para quem?
Há quase três décadas que observo e estudo o modo como o sector dos museus opera em vários países. Neste momento em que, finalmente, se considerou urgente rever o seu papel na sociedade para poder responder aos desafios do século XXI, estou cada vez mais convencida que, mais do que um problema de definição e de palavras, os museus sofrem de falta de liderança. Agarrados, por opção das suas direcções, ao estudo e preservação das colecções, não apresentam uma visão de futuro, não se vêem como fazendo parte da infra-estrutura educativa e cultural do país, não assumem um verdadeiro compromisso com toda a sociedade. Trabalham para uma elite composta maioritariamente pelos seus pares e continuam a excluir da sua acção e opções muitos cidadãos. Contentam-se em descrever objectos e em anunciar números (de visitantes, exposições temporárias, objectos emprestados). Isto é pouco, é insuficiente. Os museus têm cinco funções de igual importância e devem cumpri-las todas. E, antes disso, devem poder compreender o que elas significam. Se assim não for, falhamos. Se assim não for, estamos a ser incompetentes e profundamente desonestos. Se assim não for, continuaremos irrelevantes e não há definição que nos salve.
Maria Vlachou é museóloga e gestora cultural.