O punk está no corpo africano de Nora Chipaumire
Na abertura do Circular – Festival de Arte Performativas, em Vila do Conde, a coreógrafa e bailarina do Zimbabwe conversa sem medo, olhos nos olhos, guiada pela alegria da música, com o passado de África e da Europa.
No palco, Nora Chipaumire fala, vocifera... canta. “Put your hands together, people!”, “I'm a rock and roll nigger!”, “For the first time, Africa!” “I'm going to fuck really hard with the present, with the past”. O punk, o dub, o reggae, Jimi Hendrix conduzem as palavras à memória e às emoções dos que vêem e escutam. E nesse momento, nesse preciso momento, um corpo (negro) e uma música (popular) reclamam ambos a dignidade da aparição pública. Ou seja, a dignidade das suas histórias.
Em breves e provisórias palavras, eis #PUNK, que Nora Chipaumire (Mutare, 1965), coreógrafa e bailarina do Zimbabwe, oferece esta noite, às 21h30 no Teatro Municipal de Vila do Conde. Espectáculo de abertura da 15.ª edição do Circular – Festival de Arte Performativas, é um concerto musical, uma performance, uma peça de dança. “É tudo isso, sim”, confirma a artista ao PÚBLICO por telefone. “Vejo o meu trabalho como uma entidade viva, quer quando uso a voz, quer quando uso o corpo. Há uma vitalidade, uma sensação de vida que o anima. Se pensarmos o que faço em termos mais tradicionais, talvez não exista”, admite.
Mas o desígnio da performance não se reduz à mera presença expressiva do corpo. Aos gestos juntam-se as palavras e os seus sentidos. “Quero criar um espaço de envolvimento com os outros. E fazer aparecer as ideias nesse espaço. O que significa estar em conversa com uma audiência? Como posso criar espaços de reunião e de encontro em que as pessoas possam participar? Trocar ideias, pôr ideias em comum? São, para mim, questões muito importantes.”
O som do fim do império
Ao lado de Nora está outro performer, outra voz, Shamar Watt. O palco é deles, dos seus movimentos tão reminiscentes da disciplina da dança como dos espasmos dos vocalistas do rock, do punk, ou do reggae. Por vezes, desaparecem na audiência, antes de regressarem, numa vertigem exponenciada pelas palavras e, de novo, pela música. “#PUNK tem embebida uma palestra sónica”, esclarece a autora. “De outro modo, podia ser descrito como um álbum de música ao vivo. As pessoas sentem a música, tocam-na, interpretam-na, mas há uma narrativa que é evocada.” Uma narrativa política, musical, cultural, e, em certa medida, familiar a muitos leitores: a de um fenómeno político e histórico. “Estou a cruzar fronteiras que porventura muitos teóricos e historiadores da [música pop] não teriam coragem de atravessar. Por exemplo, entre o dub e o punk, que emergiram na mesma altura. Considero que a colisão de ambos é um produto do colapso do Império Britânico, quando se reuniram, nas ruas de Londres, negros, indianos, caribenhos. Ocuparam um espaço que era também o das classes trabalhadoras brancas, dos pobres, e forjaram com estes e entre si uma aliança pelo som. É esse som que ouvimos aqui. O da classe trabalhadora, o dos pobres, o de um momento na história do Império.”
Música e história, pop, rock, punk, dub e dança contemporânea. No palco, todos estas categorias acabam, se não estilhaçadas, pelo menos viradas do avesso, com um gesto (e um gosto) que se sente físico, visceral. “Adoro punk rock, o rock and roll, a música, toda a música. O som é físico, uma vibração, e os corpos reagem a ele. Não separo os movimentos mais coreografados dos mais espontâneos e espasmódicos, tento eliminar, diluir essa separação. Por isso trago o punk e o dub. Criam um espaço sónico que tem as suas raízes nos pobres, nas classes populares.”
Um elemento curioso em #PUNK é a naturalidade com que Nora, alheia ao cisma que nos anos 70 afastou a cultura negra do rock, se apropria de Patti Smith e da herança de um punk considerado demasiado branco. “Não vejo razão para que mais pessoas não o façam. O meu corpo africano é o produto da colisão da cultura anglófila com outras culturas. Já a separação por categorias é, a meu ver, uma estratégia para comercializar objectos. Quando a música é, essencialmente, música. Admito que nesse período tenha havido uma divisão em termos sociais e económicos que viria a reflectir-se nas práticas culturais, mas também se verificou, a par desse processo, uma orientação alimentada pela indústria.”
A posição da coreógrafa é clara: “Rejeito que um negro tenha de fazer apenas música negra, que uma mulher tenha de fazer aquilo que se considera ser próprio de uma mulher. Quero abrir um espaço de interrogação. Ninguém tem o monopólio das ideias, das obras. Quem disse que um certo género musical ou determinada teoria pertencem ao cânone ocidental, que os espirituais negros pertencem à cultura negra ou que a rumba congolesa pertence aos africanos?”
Há interlocutores nesta conversa. Grace Jones, Fela Kuti, Bad Brains, The Clash, Hendrix, Thomas Mapfumo, Linton Kwesi Johnson e, em particular, Patti Smith. “Estabeleço há vários anos um diálogo com a obra. Aproprio-me de versos de Babelog, de Gloria, de Rock'n'roll nigger. Mas, ao contrário dela, sempre falei muito com o passado. O passado é muito importante para todos os colonizados e é nesse sentido que dialogo com os textos, impondo a minha presença num cânone que anda consideramos europeu.”
Impor a presença tem implícita a ideia de um confronto pela discussão, pela palavra, que não se confunde com o perdão, o esquecimento ou a reparação. “Não falo de vingança, é um desperdício de tempo, de energia. Mas quero encontrar o outro face a face, para ter uma conversa com ele, sem medo.” O som tem nesse processo um significado fundamental: “Em África, a música popular foi sempre menosprezada, quando disseminava mensagens políticas importantes, por vezes sem que o colonizador disso se apercebesse. Com os seus jogos de palavras, a sua polissemia, criou um espaço que dava humanidade às pessoas comuns. O meu desejo, no palco, é, também, a afirmar dignidade que ela sempre teve.” A dignidade de todos os rock and roll niggers.