O difícil desafio de coreografar os quartetos de Beethoven
O arranque da temporada do Teatro Viriato, em Viseu, faz-se com Last, criação de António Cabrita e São Castro para a Companhia Paulo Ribeiro, em torno dos últimos quartetos de cordas de Beethoven.
Last, a coreografia de António Cabrita e São Castro para a Companhia Paulo Ribeiro (CPR) que marca o arranque de temporada do Teatro Viriato, em Viseu, a 19 e 20 de Setembro (seguem-se apresentações em Ílhavo, Porto e Lisboa), aponta para uma certa ideia última ou derradeira. Mas, no caso, trata-se sobretudo de um to last que vem do verbo perdurar e alude aos 20 anos da CPR como companhia residente do Viriato, às duas décadas de uma nova vida insuflada no equipamento cultural viseense e a uma ideia antiga que andava há muito na cabeça dos coreógrafos. Logo na segunda peça que criaram em conjunto, Play False (2014), António e São iniciaram o desenho de uma trilogia oficiosa que os obrigava a partir de outra disciplina artística para buscarem a inspiração coreográfica. Play False assentou, portanto, no teatro de William Shakespeare, seguindo-se Rule of Thirds (2016), construída sobre a relação com as imagens do fotógrafo Henri Cartier-Bresson. Pelo meio, as obras criadas no contexto da programação da Companhia Nacional de Bailado — Tábua Rasa e Turbulência, assinadas em parceria com Henriett Ventura e Xavier Carmo, mais a versão que os dois inventaram para o clássico Dido e Eneias —, a convite de Luísa Taveira, foram adiando a chegada do capítulo final da trilogia.
Em final de 2016, quando Paulo Ribeiro sucedeu a Luísa Taveira na Companhia Nacional de Bailado, entregou a direcção artística a António e São. Foi nessa altura que a ideia adiada de avançar para Last começou a ameaçar concretizar-se. Depois do teatro e da fotografia, os dois quiseram rodear-se de música, em particular dos últimos quartetos de cordas que Beethoven compôs, numa altura em que a sua surdez o fechava cada vez mais num mundo de sons imaginados. Era algo que tinha ficado marcado na memória de António Cabrita quando, em 2006, um amigo o convenceu de que “seria um grande desafio” coreografar estas peças de Beethoven.
Só que a dupla não antecipava ainda a dificuldade com que se iriam defrontar já depois de terem chamado o Quarteto de Cordas de Matosinhos para se lhes juntar em palco, na interpretação ao vivo dos quartetos, e no pedido para que fossem os músicos a escolher duas peças que garantissem uma hora de espectáculo. Os músicos, lembra São Castro, chamaram aos quartetos “um Monte Evereste”, dada a complexidade da sua interpretação. Quando os coreógrafos se puseram a escutar os Quartetos nº12 e nº16 (primeiro e último desta série tardia), duvidaram de que conseguissem chegar à data de estreia com uma peça criada sob o pressuposto inicial. “Ficámos muito mais assustados porque percebemos que era tamanha a complexidade da estrutura e da ousadia”, confessam.
Depois, com a consciência de que a dramaturgia no corpo dos bailarinos (Ana Moreno, Ester Gonçalves, Guilherme Leal, Miguel Santos e Rosana Ribeiro) “tinha de ser muito mais instalada, trabalhada e conseguida” do que habitualmente “para haver uma construção consistente entre música e dança”, foram trabalhando sobre movimentos abstractos ou traços da vida de Beethoven sugeridos com subtileza — como “a surdez, a irascibilidade, os amores não concretizados, a paixão que tinha pelo sobrinho”. Aos poucos as dificuldades foram ultrapassadas e os dois foram percebendo que Last podia existir sem partilharem a linguagem romântica de Beethoven. No limite, o movimento permite-se seguir os tempos, as notas e a estrutura, para logo em seguida reclamar o seu próprio caminho.
“Esta música é muito abstracta, muito cerebral e muito complexa e a peça é um confronto com a nossa linguagem”, resume António Cabrita. A análise cuidada da obra do autor alemão levou-os também a concluírem que teriam de se relacionar com os ziguezagues constantes que a composição revela, baloiçando num mesmo andamento entre uma poesia sublimada e uma escrita furiosa, e com as falsas pistas que o compositor espalha pela partitura, “preparando músicos e público para ideias que não concretiza”. Daí que, ao perceberem que, no entender dos músicos, estas são peças que “não têm imagens nem metáfora”, funcionando como exercício de composição puro e duro, António e São decidiram que também este seria um exercício coreográfico e plástico, na “relação dos corpos com a luz e com o espaço cénico”. Se para Beethoven tudo parecia possível, para os dois coreógrafos não poderia ser diferente.