A praia de Cacela Velha ainda é uma “metáfora de felicidade”
É uma das jóias da ria Formosa, coroada por uma das mais belas povoações algarvias.
É possível que o fluxo de banhistas tenha aumentado desde que foi considerada uma das 15 “melhores praias do mundo” pela redacção da edição espanhola da Condé Nast Traveler, em 2015. Mas, em plena segunda quinzena de Agosto, no fim-de-semana que se adivinhava de maior enchente na região, o areal está composto mas com espaço suficiente para que ninguém se sinta atropelado pelas toalhas e conversas nos chapéus vizinhos.
Entre praias espanholas, uma italiana e várias no continente americano, surgia o singelo areal algarvio, escolha pessoal da jornalista Sara Morillo. “Aí descobri aquela que hoje sinto como a minha praia. Talvez não seja a mais bonita (que é), nem a mais virgem (que também o é), mas é a metáfora da minha felicidade.”
Quatro anos depois, diríamos que esta continua a ser um bálsamo de felicidade, bela e, se não virgem (existem?), pelo menos recatada, tranquila e bravia. Uma língua de areia que se molda consoante os ventos e as marés, conseguindo deixar os humanos mais afoitos e desprevenidos de geleiras e toalhas e chapéus-de-sol à cabeça, com água até ao pescoço e pés a escorregar no lodo, enquanto tentam chegar ao areal ou a terra firme, conforme estejam a chegar ou a partir.
É que o acesso “tem a sua liturgia”, avisava a Condé Nast Traveler. É por isso que esta praia dificilmente se dará a grandes multidões, por mais elogios e adjectivos gordos e “instagrams” perfeitos que se publiquem. O estacionamento no Sítio da Fábrica – onde até à década de 1940 laborou a fábrica de cerâmica que lhe dá nome – é escasso e a travessia um jogo de marés.
Quando está baixa, é possível caminhar pelo sapal, com o cuidado devido para não perturbar os caranguejos, moluscos, bivalves e aves que aqui procuram refúgio, como as garças que vemos pousadas nos puzzles de lodo. Quando a maré começa a subir (ou para maior comodidade), há pequenos barcos que transportam os banhistas para o areal de Cacela Velha (1,50€ por viagem) e para a praia da Fábrica (1€). Mas há sempre quem arrisque a travessia a pé, até quando o caminho está transformado numa tranquila piscina, e acabe encurralado pelas águas, de pertences sobre os cabelos.
As duas praias distam poucos metros. A ilha é a mesma. Os nomes servem apenas para identificar as duas faixas de areia mais acessíveis a partir do ancoradouro do Sítio da Fábrica (em nenhum dos casos existe um cais flutuante, há que caminhar pela areia e molhar os pés para chegar ao barco). A praia da Fábrica fica-lhe mesmo em frente, o areal de Cacela Velha um pouco mais para a esquerda, aos pés da histórica aldeia.
Estamos no extremo leste da ilha de Cabanas, uma das cinco que formam o ecossistema dunar da ria Formosa. Uma pequena garganta de mar afasta-nos dos areais da Manta Rota, e há quem se divirta lançando-se sobre bóias e colchões insufláveis, aproveitando a corrente para flutuar até às águas transparentes e calmas que se guardam entre os areais, a costa e a ribeira de Cacela Velha. Do lado do mar, batem umas ondas leves e há alguns limos, mas aqui a água parece vidro cristalino, ideal para crianças pequenas, com o mais belo postal ilustrado por cenário: no topo de uma colina suave erguem-se os muros da fortaleza, coroada pela alva igreja de Cacela Velha. É um luxo mergulhar com vistas assim.
Se virarmos costas a Espanha, então temos praia para caminhar até à barra de Tavira, frente ao velho forte do Rato, uns bons sete quilómetros de Parque Natural da Ria Formosa, com o areal de Cabanas pelo meio, aos quais não terá ficado indiferente o jornal britânico The Guardian, quando há dez anos elegeu Cacela Velha como uma das melhores praias europeias para quem gosta de caminhar.
Não nos atrevemos a tanto. O passeio fica-se por esta ponta da língua de areia, entre os areais de Fábrica e Cacela, ida pela beira-mar, regresso pela orla do sapal. Pelo caminho, cruzamo-nos com famílias apetrechadas de geleiras, cadeiras e brinquedos, encontramos pequenos moinhos de vento, construídos com canas e penas caídas, e pranchas de windsurf a levitar sobre as ondas perante uma assistência de banhistas curiosos com a leveza do equipamento e as manobras do surfistas, de quilha levantada pelo vento.
Ainda que o número de veraneantes não se compare ao de outros areais, ainda que não existam construções (apenas um minúsculo bar de assistência à concessão de espreguiçadeiras) e ainda que os caixotes do lixo, com separação de resíduos, estejam cheios, o curto caminho que fazemos é suficiente para encher um saco de beatas, pedaços de plástico, esferovite e de outros despojos de pesca. Este é talvez um dos principais passos que falta dar para que possamos garantir que esta – e tantas outras praias portuguesas – se mantenham uma “metáfora de felicidade” de Verão para Verão, de geração para geração, sem que o frágil equilíbrio do ecossistema seja posto em causa. Vamos cuidá-la(s)?